levante

textos sem sentido e outros

segunda-feira, janeiro 26, 2004

Bem, vou ali e já venho...
Justificação das amendoeiras
(para ti)

Embora ninguém me tenha perguntado porque existem tantas amendoeiras no Algarve, eu vou responder (versão resumida e alterada da lenda):
_ Era uma vez um jovem príncipe, mouro, que vivia nos arredores de Silves e gostava de passear pelos campos. Um dia seu pai recebeu uma visita de uma caravana real, vinda algures dos países do norte, onde de acordo com relatos fidedignos fazia muito frio e as pessoas tinham o rosto esquivo e pálido.
Dessa caravana, além do rei do norte, saiu também uma bela princesa. O príncipe mouro não se encontrava perto do castelo quando tão inesperada visita chegou, mas atraído pelos som da trombeta que anunciava visitas importantes e dignas de recepção real, começou a correr na sua direcção.
Quando chegou, já seu pai tentava a difícil comunicação com aquela gente de tão estranha língua. Felizmente os muçulamanos eram povo de cultura, e havia sempre alguém versado na arte do diálogo, tal como havia sempre uma enorme curiosidade nos costumes e ensinamentos estrangeiros.
O príncipe foi saudado de forma amável pelos visitantes, e seus olhos de imediato se perderam no verde azulado dos olhos da princesa. Estava-se no fim da Primavera, altura em que a natureza embala os seres humanos num polén afrodisíaco e arrebatador.
Na primeira semana que a visita real durou, e graças à cumplicidade de uma jovem aia, foi possível ao príncipe e à princesa encontrarem-se sozinhos por alguns momentos. Debaixo de um sol ameno banharam-se no Arade e nas cristalinas águas das Fontes, sem inocência as suas peles tocaram-se e os membros do seu corpo revoltaram-se numa cobiça de prazer.
Ficaram noivos e casaram algumas semanas depois, e o rei do norte, não sem lágrimas, regressou à inóspita região de onde havia saído há meses para conhecer o resto do mundo. Mas agradara-lhe a amabilidade do povo muçulmano, e não era hábito cultural do seu próprio povo contradizer os desejos íntimos dos mais jovens.
Nos primeiros tempos correu tudo bem entre os apaixonados, mas passados alguns meses e chegado o Inverno, a princesa começou a sentir profundas saudades da sua família, da paisagem do seu país, da neve que por aquela altura cobriria certamente os campos onde crescera. Então o príncipe, sempre resoluto e imaginativo, não suportando mais a angústia da sua amada, mandou plantar amendoeiras por toda a região, e fê-lo com particular cuidado nos campos que se estendiam ao redor do castelo. Passados dois anos já a plantação começava a dar resultados. Chegado o fim do Inverno as amendoeiras começavam a florir, os campos enchiam-se de branco, como se cobertos de neve. Os ventos mais fortes arrancavam as pétalas das árvores e faziam-nas circular pelo ar, quais flocos gelados. E até meados da Primavera os olhos claros da princesa brilhavam perante tamanho esplendor da natureza, a pele fina do seu rosto ganhava o aroma das flores, o seu sorriso enchia o castelo e a alma do príncipe.
Não sei se viveram felizes para sempre, mas às vezes, não sei porque razão, no meio de tanta dúvida, de tanta tristeza, de tanto conhecimento, de tanto cepticismo e ironia, de tanta amargura, faz-me (faz-nos?) falta um pouco de inocência. Acreditar que as flores que agora vejo pelo vidro da janela são a ilusão de um mundo de felicidade. O difícil talvez seja admiti-lo.

domingo, janeiro 25, 2004

Jarros

No Verão eram pequenos, frágeis, parecendo que qualquer chuva mais forte os arrastaria para a morte. Mas a terra é um lençol de fértil calor que acaricia e alimenta os seus filhos. Veio o Outono, veio o Inverno em que começaram a crescer sem receios, voluptuosos, ordenando o jardim de acordo com a sua vontade. A primeira flor surgiu há cerca de um mês, levei-a na memória na viagem de Natal.
Agora, nesta Primavera antecipada, crescem com fulgor, e quase os oiço a crescer, quase os oiço, quando encosto o ouvido às suas folhas brilhantes, a falar da dália moribunda, dos botões da camélia, da parreira podada, dos pardais a debicar a terra. Quase sinto o lento desenrolar das suas flores brancas, de dia para dia, de noite para noite, lentamente, a refulgir sob o sol.
É uma planta banal, dizem-me. Cresce em qualquer lado e sem grandes cuidados. Tem flor bonita mas passageira, volátil como toda a beleza simples. Mas há qualquer coisa naquela forma cónica, há qualquer coisa naquele estame amarelo que parece ser o fluxo de um corpo, penetrando-o, violando-o docemente, há qualquer coisa naquele libidinoso abrir-se ao mundo. Um erotismo, uma marca de corpos ardentes, um desejo que vai crescendo e se acumula num epicentro de calor, como a carne que aquece os corações e o sexo.

sexta-feira, janeiro 23, 2004

Comentário às citações

As mãos prendem-se, deus é um borrão de linguagem, a história é uma manta retalhada de enganos. Há que segurar com força o punhal para que ele não nos ataque. Ou então há que atirá-lo para o mais inóspito dos recantos. Ou talvez rasgar a carne, verter o sangue, respirar com as palavras que nascem do sem-sentido. Para quando a aurora que dissipe os receios?
Citação II

"Porque la verdad es un puñal desnudo en la mano del hombre y puede volverse contra él."

_ Mika Waltari, Sinuhé, el Egipcio (Tradução castelhana. Não consigo, não quero traduzir a frase para português. Como dizer "desnudo" sem perder a nudez, a vulnerabilidade perigosa ou o movimento do "des-"?)
Citação I

"As proposições e questões que têm sido escritas acerca de temas filosóficos não são, na sua maior parte, falsas mas sem sentido. Não podemos por isso responder a questões deste género mas apenas estabelecer a sua falta de sentido. As proposições e questões dos filósofos fundamentam-se na sua maior parte, no facto de não compreendermos a lógica da nossa linguagem."
(Elas são do género da questão de saber se o bem é mais ou menos idêntico que o belo.)
E não é surpreendente, que os mais profundos problemas não são de todo problemas."

_ Ludwig Wittgenstein, Tratado Lógico-Filosófico

quinta-feira, janeiro 22, 2004

Um dia

A manhã amanheceu limpa.
O mar-de-fora, que por vezes se parece com a ondulação de Oeste (que corre de esguelha a costa sul) mas que na sua pureza só deve ser aplicada à ondulação de Noroeste (que contorna o cabo de S. Vicente e varre, vai varrendo as praias douradas entre Sagres e, consoante a força, um ponto de extinção algures na costa algarvia-andaluz) chamou-me.
Em Ferragudo havia ondas que revoltavam a areia. Já não eram de mar-de-fora como ontem, talvez de oeste. Portanto, menos perfeitas. É um local bonito, que faz as delícias de surfistas e bodyboarders. Dentro de água, por detrás do molhe que divide rio e mar, vêem-se os prédios da Praia da Rocha. Por vezes parecem nascer das pedras do molhe, por vezes são engolidos, como eu, pelas cristas das ondas (lip é o termo "anglo-americano-técnico" do surf. Infinitamente menos poético do que crista).
Devia estudar mas não consigo, devia pensar mas não consigo, devia tomar decisões que não consigo tomar. Obrigo-me a ir à Biblioteca de Portimão, na esperança de que o ambiente faça o estado de espírito, mas feliz ou infelizmente - não sei - todas as mesas estão ocupadas. Ainda abro o Tractatus... de Wittgenstein, sento-me numa confortável poltrona, mas "a linguagem como representação do mundo empiricamente verificável" não me fascina - agora. Saio desalvorado em direcção ao mar.
No Fortaleza de Sta. Catarina, erguida no séc. XVIII (?) "para protecção de Silves e de Vila Nova de Portimão", havia uma rapariga que, debruçada de uma ameia, mexia no telemóvel. Mandava um SMS ao príncipe que se esqueceu de a vir buscar.
O rio Arade encolheu-se depois da construção da marina. Que coisa mais feia! No areal da Praia da Rocha
pegadas de pessoas, poucos passos presentes e verdadeiros, rodados de tractores.
Há dias em que, lentamente, me vou chateando com o mundo. Ao almoço tinha pensado em escrever sobre o bom artigo de Miguel Vale de Almeida no Público (sobre umas questões essenciais do aborto. Finalmente alguém diz que a Vida não é por essência uma decisão nem uma definição da ciência!). Mas como me fui chatendo lentamente com o mundo... Pensei em acabar com este blog, matá-lo para me deixar de vez destas pieguices existenciais.
Entretanto regresso a casa. O meu cão esteve quase a morrer mas hoje está melhor. Sento-me ao computador e começo a descrever o meu dia, começo a invadir a minha privacidade, coisa que julgava nunca vir a fazer. Porquê? Por que razão há momentos na vida em que não conseguimos falar senão de nós, com peso, gravidade, como se no fundo dos dias não houvesse senão um pesada carga de palavras que vamos aprendendo a utilizar. Para descobrir que nunca acertamos. E por vezes mais vale o silêncio.
A tarde entardece limpa.
E afinal não veio

A nortada adormeceu para oeste, para o lado do sol mais quente. Curiosamente, ao invés do Verão, é por vezes o poente, o Atlântico, que traz o tempo mais ameno. O levante de Inverno é mais incerto e chega muitas vezes a confundir-se com o Nordeste, com o frio que vem do interior de Espanha e da Europa, dos Pirinéus, dos Alpes, do resto do mundo que não se confunde com esta esquina de incertezas (porra! que ando com uma fixação psico-meteorológica)

segunda-feira, janeiro 19, 2004

Ventos que a razão desconhece

quem tenha razão em ficar de pé atrás. Afinal o levante é essa coisa misteriosa, essa revolta que se acumula, que parece acumular-se ali, naquele canto do mar e do mundo onde os sentidos e a razão se perdem. Mas quer-me parecer que esta nortada não vai durar muito tempo. Acalmou-se ao fim da tarde. Se adormecer para leste, quem sabe se amanhã a água do mar não começará a ficar turva.
Nortada

A cozinha.
A porta e a janela viradas para sul. O sol que roda lentamente e flutua sobre a mesa inundada de papéis.
O terreno que o meu bisavô comprou aqui, na periferia da cidade, há mais de 40 anos, é agora uma ilha de verde (e amarelo da erva-azeda, e cinzento prata das oliveiras, e branco rosado das amendoeiras) no meio da expansão urbanística.
Um grupo de miúdos vai para a escola. Devem ter aulas às 16h. Passam por um prédio em construção que, pela altura da grua, deverá atingir os seis andares. É pouco.
O miúdo da bicicleta aproveita o declive feito pelas máquinas e dá um pequeno salto; volta atrás e volta a saltar. Os companheiros seguem a pé.
o bater do martelo nos taipais ecoa pela ilha verde
volta atrás (salto) aplausos e gritos
volta atrás a grua guincha e ecoa salto
a grua a ilha o cimento o verde o cheiro da terra lavrada
o vento é norte e frio (no outro lado da casa)
empurra-me para fora azul O mar
The End

Interrompo a publicação do diário porque ele deixou de fazer sentido, porque faz parte de um mundo que não existe, que deve deixar de existir.

quinta-feira, janeiro 15, 2004

Diário ficcionado de um algarvio longe do levante
27/12


No prédio em frente há lâmpadas acesas e pessoas-sombras a mastigar o conforto (sempre o conforto destas casas sem estores mas ainda assim fechadas, murmurantes, distantes
Aproveito o conforto e só pela noite, quando a obrigação de entregar os vídeos alugados é bastante forte, as ruas de Helsínquia se abrem aos meus passos.
Ah, é verdade, o silêncio finlandês, esse traço de orientalidade! Não o encontro, ainda não o encontrei. Talvez porque estou na capital e praticamente só falo com pessoas jovens. Silenciosos degenerados, alguns... outros lá vão mantendo a reserva, esse respeito sorridente, humilde, simpático. Para cumprir a minha missão de espionagem talvez precisasse de ir até ao interior do país, à região dos lagos. Aí, além de ser possível encontrar os “exemplares mais puros desta raça”, talvez conseguisse investigar o porquê das casas dos lagos, das idílicas férias de Verão passadas nessas casas, num recolhimento purificador, quase tão purificador como a sauna que nenhuma casa pode deixar de ter.
No Verão passei algumas semanas nessa zona, circulando por entre os lagos, as florestas, os mosquitos, os alces, as saunas. No Verão aprendi que nenhum lago é igual a outro, quanto muito parecido, mas sempre com uma cor, um tom diferente. No Verão – excepcionalmente quente – tomei banhos de placidez ao pôr-do-sol e de lua cheia sob um manto de mistérios. Por vezes parecia que as águas dos lagos não tinham fundo... e o corpo tornava-se pesado e queria fugir de mim, para o fundo, queria ficar ali naquela imensidão plana e distante de todo o mundo. Afundar-se na paisagem de florestas e água, florestas e água, florestas e água. Imagino agora uma paisagem de gelo e neve, gelo e neve, gelo e neve. E o corpo a querer afundar-se na água doce, pesada, que o chama. E o corpo retraído porque só gelo impenetrável ou água mortal.
E há o Parque Natural de Koli (com os picos a 300 e poucos metros acima do nível do mar), e as ilhas dos lagos desenhadas pela mão do degelo, essa terra mítica de contemplação onde os artistas e os menos artistas vão buscar inspiração. Terra vasta, silenciosa. Ah! O silêncio finlandês. Desisto do projecto, não quero pensar mais nisso.
Regresso a casa, ao conforto da casa.

terça-feira, janeiro 13, 2004

Diário ficcionado de um algarvio longe do levante
26/12


Chove.
A neve derrete.
Falo no escuro de uma casa e rasgo o silêncio com esgares de loucura. Algo – dentro ou fora de mim – morre lentamente, e tenho medo de que esta angústia não seja apenas a natalícia, mas também uma outra mais encarniçada, sufocante, mortal.
Perder o humor, a vontade de rir, a confiança nas palavras. Perder aquilo que sei difícil de construir: os muros erguidos a braços de ilusão. Ganhar um fatalismo estúpido, uma estúpida dor empacotada em rasgos negros sobre um papel branco de alvura.
E sei que não sou assim e nada disto é verdade, nunca estive nos lugares que descrevo, nunca vi a neve cair sobre os meus ombros, nunca estive nem próximo da Escandinávia, não conheço pessoas de lá. Estou num sítio onde o sol brilha, numa esplanada ao pé do mar do Algarve. Os turistas de Inverno dizem “que sorte este pessoal aqui de baixo, têm sol todo o ano!”, e lá vão eles visitar mais uma praia, mais uma estrada rodeada de betão. “Ai se nós em Lisboa tivéssemos este tempo... Seríamos tão mais felizes, mais alegres, com menos problemas existenciais causados pela chuva e o cinzento das nuvens numa tarde de Domingo, blá, blá, blá”. Sorrio, e entretanto chega um casal de holandeses em manga curta e calções. Ambos bebem cerveja, contemplam a serenidade do mar, esboçam algumas palavras que felizmente não compreendo, e penso, no fundo, no fundo, que o grande problema de Portugal é a incompreensão meteorológica.
Regresso ao país dos lagos (são quase 200 mil, para ser mais preciso).
O vento vem do mar, é limpo e frio. Pergunto-me se haverá aqui algo de parecido com o levante. E recordo-me do final de Julho e dos corpos ensopados de humidade na vertigem do Báltico. As peles quentes, os poros sufocados. Era bom. Descubro que há levante sempre que alguém puder renascer do sangue e da pele.
As pessoas passeiam à beira-mar e chocam o seu olhar com o meu. Por vezes insisto e obrigo alguém a baixar a cabeça. Conclusão: as íris escuras fortalecem o olhar.
Tiro algumas fotografias a um dos meus locais preferidos de Helsínquia, onde a simetria do bairro rico se cruza com as chaminés das fábricas e a impetuosidade de uma zona industrial. A beleza deste local, como de tantos outros nesta cidade, é a aparente continuidade entre as zonas habitacionais e industriais. Continuidade descontínua – e talvez seja isto, a capacidade de fazer isto, que torna a arquitectura de Alvar Aalto (e afins...) tão especial, tão natural na sua harmonia rugosa.
À noite usufruo de uma prenda de Natal: “O Quebra-Nozes”, ballet clássico na Ópera Nacional. Gosto da música de Tchaikovsky. O espectáculo termina e nós saímos sensivelmente ao décimo quarto minuto de palmas. Compreende-se, a companhia é grande e há muita gente em palco para ser aplaudida. Só não há é paciência para tanto... Levantamos os casacos mas entretanto já a turba empinocada de crianças e adultos invade o hall do magnífico edifício. Turba empinocada naturalmente, pois, que talvez esta gente do norte não tenha tanta ânsia no “parecer social” quanto a tem o português. Mas ainda assim, e talvez isto seja provocado pela minha rudeza algarvia, não percebo, não quero perceber porque é que a arte e os espectáculos artísticos têm de ser mostra de vestuários, poses e posições sociais.
O regresso a casa é feito a pé, por um caminho longo e demorado. Mas é boa ideia, pois as palavras abrem-se e há um halo brumoso que rodeia as nossas bocas e parece contagiar as nossas frases. E pela primeira vez, apesar da noite profunda e dos –2º C, apesar do gelo escorregadio e do silêncio no coração da cidade, apesar dos eléctricos que arrastam as pessoas pelo silêncio do coração da cidade, apesar dos passos temerários das pessoas que não esperam pelos eléctricos que rasgam por dentro as palavras enleadas no coração, apesar das mãos cobertas de luvas, da pele escondida, dos corações escondidos e rasgados, das cidades eléctricas, das palavras caladas, do silêncio gelado, das bocas sedentas e da bruma de calor nos lábios gretados, apesar de tudo isto, pela primeira vez, os nossos olhos abrem-se e iluminam todo o universo.
Diário ficcionado de um algarvio longe do levante
25/12


A temperatura sobe.
Chove.
A neve derrete.
Há dias que nunca existiram, dias que não deviam existir, dias que não podiam deixar de existir.
Há pessoas que precisam de falar.
Diário ficcionado de um algarvio longe do levante
24/12


Cansado do conforto da casa decido sair à rua. Quero ver de novo o mar. Sozinho reencontro lugares que ficaram presos na memória do último Verão. As pequenas ilhas que marcam o horizonte próximo de Helsínquia já não estão cheias de banhistas a aproveitar o sol, são agora fustigadas por um vento cortante. Já não há barcos no pequeno porto de recreio, mas antes blocos de gelo que flutuam em movimentos compassados. Do outro lado da cintura de ilhas, onde verdadeiramente começa o Báltico, imagino serem impossíveis os blocos, porque o mar é violento e a espuma branca das ondas bate nas rochas e dissolve-se no vento. Do lado de cá tudo é mais plácido, e apenas os patos permanecem dentro de pequenas poças de água, já não airosos como em Julho, mas como que humilhados pelo gelo, à espera de não sei que deus ou mundo revelado.
Tiro algumas fotografias, embora os poucos graus negativos não ajudem muito o processo. As mãos protestam assim que saem das luvas, e as pessoas olham-me com espanto, e eu olho com espanto para as pessoas que correm ao lado de um mar gelado, que alimentam um bando de aves indistintas (gaivotas, corvos, pardais, “arakas”?), unidas às outras aves e aos homens pela aspereza do Inverno.
Vou caminhando, lembrando-me da filosofia e da fotografia, da relação entre ambas, dos mundos destruídos e refeitos, das realidades esquecidas e apreendidas, do real, das ilusões, dos ilusionistas. Lembrando-me do espanto, que é o sangue que as alimenta, lembrando-me das peles duras e secas, sem sangue, imunes às mais afiadas lâminas. E do esforço de pensar e tornar tudo isto compreensível, enfim, de tornar útil um passo nestas ruas da diferença, de pessoas diferentes, de “um mundo” sempre diferente.
Faço o percurso costeiro até ao porto comercial onde os enormes ferrys descansam, sigo em direcção à catedral branca. A boneca da loja de souvenirs russos (mais russos que finlandeses...) continua sentada na esquina a olhar os turistas que olham a catedral que eu olho pelo olho mecânico e espelhado da máquina de fazer realidades.
“Can you take me a picture”, peço. Sozinho, preciso de um pouco de atenção.
As ruas do centro estão quase vazias, as lojas fechadas. No mesmo sítio do dia anterior o homem do trompete toca qualquer coisa. Tem o instrumento e as mãos envolvidos num saco de plástico – está frio e o vento entorpece os dedos. Sou incapaz de tirar uma fotografia. Guardo a melancolia no cinzento do natal e julgo, sei, que nenhuma película exposta pode guardar sem esquecer.
Véspera de Natal, Julie Andrews, “Música no Coração”. Ahhhh! Também aqui!?
Pelo menos não se come bacalhau com todos.
Diário ficcionado de um algarvio longe do levante
23/12


O dia começa tarde, a noite e o escuro engolem o dia.
Mas por enquanto ainda há a luz reflectida na neve, um último foco que percorre as esquinas, o beiral dos telhados, as pegadas fundas das botas, das pernas, das pessoas, um último foco que acompanha o arranhar distante dos limpa-neves nas estradas onde os carros de pneus cardados derrapam e lutam e desistem e ficam a descansar sob um manto branco de paz.
Compro um cachecol, as pessoas compram prendas
(lojas – calor, ruas – frio. loja, rua, pessoas, loja, rua, loja, rua, pessoas, pessoas, loja, rua, tontura, vertigens, febre do frio, rua, loja, cachecol, pessoas, natal)
No coração da cidade o homem do trompete toca um Jingle Bells que rompe o frio do ar, e todos passam por ele, pela música, como se ambos já sempre existissem naquele lugar.

terça-feira, janeiro 06, 2004

Diário ficcionado de um algarvio longe do levante
22/12


Tempestade de neve.
Fotografo as silhuetas escondidas pelo torvelinho de flocos brancos que se espalham ao redor do hotel. Ainda só consegui tirar fotografias a partir de janelas, com a protecção dos vidros.
É difícil andar na rua. Dói-me a garganta e a neve força a entrada pela gola do casaco. Procuro uma loja onde comprar um cachecol, mas são todos muito caros, não vale a pena. Também procuramos prendas de natal para os sobrinhos finlandeses da Mari. Há lojas mais autênticas, mais tradicionais, outras que já sofrem o excessivo artificialismo do turismo.
Voltamos a encontrar a Tina. No Sushi Bar, antes do regresso à Finlândia, lamento-me de não ter tido tempo de visitar um pouco mais da Estónia, ou pelo menos de Talin. Já me tinham falado dos seus bairros sociais, construídos durante o regime soviético: bairros concêntricos, voltados para dentro, cinzentos, aptos a conservar as pessoas no respeito silencioso das verdades absolutas. “São perigosos”, diz a anfitriã. Diz também que existe actualmente uma primeira Estónia, a dos ricos e/ou bem sucedidos, e uma segunda Estónia, a das dificuldades económicas, das margens e dos bairros sociais. É um país que – e lembro-me agora de Ernest Gellner – sabe na pele o que é a liberdade, porque a desejou durante muito tempo e tem-na há pouco mais de dez anos. Mas o problema aqui, como em tantos outros países do ex-bloco, parece-me ser a associação demasiado apressada entre liberdade e liberalismo económico/capitalismo, situação potenciadora de grandes desequilíbrios e disparidades sociais.
Tempestade na terra, tempestade no mar.
Embarcamos no ferry mais lento, supostamente mais seguro, mas nem sequer este se atreve a enfrentar as difíceis condições que se fazem sentir no Báltico. Esperamos cerca de três horas e só então as luzes do porto se movem, o enorme barco balança um pouco e sabemos estar a navegar.
A irritante música que chega do Karaoke Bar, os rostos esquivos e pálidos.
Diário ficcionado de um algarvio longe do levante
21/12


O dia começa cedo. A luz ergue-se molengona e inibida pelo solstício de Dezembro.
Se os ventos não permitirem a travessia do Báltico no rápido ferry da Silja Line, teremos de ir num outro mais lento e de horário imprevisível.
O dia começa branco. Já se sabia. Ela já sabia e talvez por isso nenhuma surpresa, nenhum deslumbramento ao espreitar pela janela do quarto. “Quando era criança ficava sempre entusiasmada...” Pois eu ainda não deixei de ser criança, e agora, de certa forma, ainda o quero ser mais. Nunca tinha verdadeiramente visto nevar.
Os primeiros passos na neve são sempre estranhos, depois, como todas as pessoas parecem andar normalmente, também o tento fazer. Preciso de um cachecol.
No ferry (o mais rápido) há muitos russos e estónios. Sei-o porque mo disseram e porque na porta de embarque havia uma entrada para os cidadãos da EU e uma entrada para os outros. Com tudo isto lembro-me de que estou no limite da Europa, ou pelo menos de “uma certa Europa” que nos habituámos a aceitar como única, como a verdadeira, como a que escolheu o rumo certo.
O vento é de bombordo, do mesmo lado que escolhemos para nos sentar. O vento fustiga as janelas e empurra as ondas e embala o barco que é de repente um enorme berço onde só apetece dormir.
“Doem-me os joelhos", ouço. "Sabes... os joelhos doem-nos quando temos muitas mudanças na vida”. Muda de posição, apeteceu-me dizer. Não disse nada.
A Estónia pertenceu ao bloco soviético, sei-o pelas fardas reminiscentes dos funcionários fronteiriços.
Neva intensamente em Talin, e às apalpadelas tentamos encontrar “Sadama”, o local do hotel (a piada de inspiração iraquiana é inevitável). Vagueamos um pouco pela cidade. A ausência de placas de sinalização torna claro que já saímos da Finlândia.
Tínhamos combinado um encontro com a Tina, uma amiga que estudou no ano passado em Coimbra. Tentamos encontrar a praça que fica na cidade velha, o bairro medieval que foi restaurado há pouco tempo e que apetece percorrer a pé e sem rumo definido. Infelizmente, para já, temos um objectivo, e reparo que os grandes problemas da humanidade, tal como os de duas pessoas perdidas, surgem mais dos meios a utilizar do que propriamente dos fins a atingir.
A Tina diz que é a primeira pessoa a ensinar português na Estónia. Paradigmaticamente, ao contrário das línguas e culturas espanholas e italianas, já bastante conhecidas e apreciadas por estas bandas, este caso revela as nossas dificuldades de projecção exterior.
A Tina diz que este ano não há nenhum estudante português a fazer o programa Erasmus na Estónia, e talvez por isso ou pela falta de dicionários e gramáticas, inunda-me de perguntas acerca de palavras, expressões e entoações. Respondo com prazer, sentindo que estou a cumprir um dos meus poucos deveres patrióticos.
No “Noku” (pilinha), com uma “Saku” (não sei o que significa mas é uma boa cerveja) a escorregar por entre a conversa, descobrimos que afinal há um estudante português naquele país. Vem sorrateiramente apresentar-se à nossa mesa, já o bar desligava o som e as luzes, e diz que é do Porto, que vive e estuda na mesma cidade da Tina, que nos ouviu falar português e então..., que o politécnico que frequenta tem boas condições. E queixa-se do escuro, da cinzenta cidade que agora se esconde sob a neve, e arrasta a voz, metendo palavras inglesas pelo meio, e despede-se já ao fundo da rua e
o vento é frio e a neve vagueia pelo
ar
e os olhos protegem-se da
neve que vagueia
e a cidade velha
iluminada pelo calor da cerveja
pelas luzes pálidas da
noite
é um sítio que dá sentido à palavra
viajar
(voltar?)

domingo, janeiro 04, 2004

Diário ficcionado de um algarvio longe do levante
20/12

Cansaço. O estômago traído pela comida dos aviões.
Saio de casa às 3 da tarde e é quase noite escura.
O vento corre rasante pelos corredores da cidade, pelas margens dos prédios do bairro – arquitectura "jungen" da primeira metade do século, cores de Outono, limpeza. O vento frio infiltra-se no hábito, corrompe o calor do sul que me vinha diluído no sangue. Preciso de um cachecol.
No supermercado as mesmas embalagens e marcas desconhecidas que havia encontrado no Verão. Escolho uma ao acaso mas nenhuma das descrições, escritas em finlandês e sueco, as duas línguas oficiais, me permitem perceber exactamente o que tenho na mão.
Antes de regressarmos a casa passamos por um café-restaurante-teatro. Sou aconselhado a comer batata com recheio de rena, um prato típico de Natal. Relutantemente lá acedo em experimentar a carne do simpático animal que puxa o trenó do barbudo, mas por obra do acaso ou por ser realmente uma iguaria da época o prato já tinha esgotado. Mas a galinha está boa...
Como ao lado de uma foto de Peter Brooke, que por ali havia passado há uns anos. Acho que já tinha ouvido alguém falar da importância deste senhor para o teatro contemporâneo. Não sabia que era careca.
Em casa, pela noite dentro, acompanhado de vinho quente e visitas locais, o meu inglês vai-se desentorpecendo e eu vou tendo dificuldades em dizer exactamente aquilo que quero dizer.
“Saturday night”. Há gente jovem a circular pelas ruas, dentro dos bares, à porta dos clubes e bares que exigem vistoria de entrada.
A cerveja de meio litro perde logo a força mas vai-se bebendo até ao fim. Não tem a mesma vivacidade da portuguesa, embora ao seu modo seja boa.
Amanhã partimos para a Estónia. Amanhã vai fazer frio. Amanhã vai nevar.

Diário ficcionado de um algarvio longe do levante
19/12

Check In.
“À janela, pode ser.”
Não tenho medo das alturas e gosto de ver as luzes afastarem-se, gosto desses pontinhos sobre tela negra que desenham formas imprevistas e dizem uma imaginária presença humana. Quando o sol nascer posso também ver a paisagem imóvel dos campos e das cidades, os lençóis de algodão a que as pessoas menos informadas dão o nome de nuvens, a paz lenta e extensa que percorre os céus, o infinito tão perto dos olhos e ainda assim tão envergonhado.
Um erro informático. Nada de especial, apenas o suficiente para me lembrar de que viajar é também perder um pouco o controlo das coisas, sujeitarmo-nos ao imprevisto, ir por aí se possível. Não tenho (por vezes) medo de me perder.
São 5 da madrugada no aeroporto de Faro. Os olhos, com pouco mais de uma hora de sono, têm dificuldade em aguentar a luz que se derrama sobre os passageiros em espera.
A viagem é saltitante – Faro, Lisboa, Barcelona, Helsínquia – e agrada-me que assim seja.
Gosto de Barcelona vista do anfiteatro que o avião é obrigado a desenhar para aterrar no aeroporto. Tenho de voltar com mais tempo.
Na última ligação, já num avião da Finnair, sinto a estranha familiaridade que a língua finlandesa é capaz de proporcionar a quem com ela já contactou. Contactar é sem dúvida o verbo mais indicado para definir uma primeira relação com o finlandês, língua completamente ininteligível para o comum dos mortais. A estranha sensação de familiaridade vem sobretudo da musicalidade que o finlandês ganha quando se perde a dureza do primeiro contacto e o ouvido se habitua ao som do desconhecido. Não sei porquê mas parece-me uma língua com ritmo, quebras e por vezes arrastada de forma infantil. Como todas as línguas que não nos pertencem?
Ponho à prova a minha perícia e exercito um primeiro “kiitos” (obrigado) com a hospedeira de bordo. Tenho de melhorar a articulação dos i´s com o t...
O avião começa a descer, as luzes aproximam-se, a tela do mundo lá fora ganha contornos e torna-se um gigantesco relevo. É noite em Helsínquia.
Ulos"(saída)
Nada a declarar na alfândega, a boca seca, as palmas das mãos húmidas.
Há um funil de pessoas à espera de pessoas como eu. Há alguém à minha espera – não tem na mão uma placa com o meu nome.
“Sabes que o tempo, além de criar rugas dissolve os traços do rosto? Marca e apaga, desenha e faz esquecer.”
Em Helsínquia não há neve, apenas algum gelo empilhado nas ruas. Há a estranheza da distância, de pessoas distantes que se encontram sem se conseguir encontrar. Há lugares ausentes. Há saudades por matar.
Ponto de situação

Dei uma volta pelos meus arquivos e penso que esta coisa do blogue até tem sido positiva. Continuo a ter um certo orgulho pelo ínfimo número de visitas que o meu contador regista. Prefiro aprender antes de me achar com capacidade de trazer algo de novo a este mundo, e nem sempre a ânsia é amiga dos bons caminhos. Também não fui capaz de corrigir a irregularidade e a grandeza dos posts. Se têm ou não qualidade neste meio tão espartilhado, bem, isso é questão com que não me quero preocupar. Falhei no objectivo de continuar uma vertente meta-bloguística, falhei na crítica das actualidades, falhei nos diálogos, discussões e picardias, falhei, salvo raras excepções, na troca de ideias. Contudo, não nego, não posso negar que este espaço (sem espaço, insisto) seja também um meio de comunicação em larga escala, onde a bem ou a mal circulam ideias, opiniões, lições e rostos invisíveis. Mesmo sendo um mau blogonauta fico contente por ver tanta gente empenhada nisto, gente interessante e interessada, gente que é uma outra imagem deste país por vezes demasiado envergonhado e vicioso. Também há coisas más, mas dessas não me apetece falar.
Pessoalmente, este "mesmo ar que alguém me levou a respirar" também foi positivo porque me ajudou e obrigou a escrever com mais regularidade. Tem sido, portanto, um bom exercício de escrita, e começo a aperceber-me de que o hábito faz, pelo menos, a fluidez. Originalidade, qualidade e riqueza são coisas que não sei se as minhas palavras escritas algum dia terão.
Por tudo isto o Levante tem-se tornado algo egoísta, limitando-se muitas vezes a ser um mero jogo de palavras em que me ponho a mim próprio numa teia de dissimulações. Mas esta dissimulação da subjectividade, a forma como cada um se deixa transparecer ou se faz ocultar no blogue que cria é, de certa forma, a singularidade de todos nós, os nossos medos e aspirações a respirar sob a crosta de verniz que uns chamam de ilusão e outros de sentido.
Portanto, e para seguir nesta linha, irei dar início a uma espécie de diário que comecei a escrever por terras escandinavas. Será mais um jogo, para mim, para os poucos ou muitos que o quiserem jogar.
Regresso

Regresso em tons cinzentos, contagiado de silêncios (com os que já eram meus e com os outros que fui buscar) e fechado sobre o calor do meu corpo. Mas felizmente há no Algarve este sol incrível de Janeiro, há o mar turquesa e a brisa norte que só refresca quando a tarde anuncia a noite. Ajuda.