levante

textos sem sentido e outros

sábado, julho 30, 2005

o homem do futuro V

Simplificação do Homem ou necessidade de o controlar?
O homem do futuro anunciará o advento de uma idade prometida, em que o individualismo se fundirá com o destino do mundo. Não será a idade dos deuses, ou pelo menos dos deuses transcendentes, será a idade dos "ídolos" -- reificados como o futuro da humanidade e como verdades possíveis, fortes e necessárias. A constatação da necessidade desta idade prometida surgirá após uma época de dessacralização radical, na qual as religiões serão submetidas ao jogo especulativo das bolsas e ao marketing publicitário. Essa época de dessacralização será seguida da instauração política dos ídolos (nem Paulo nem Mussolini, mas qualquer outro anúncio de verdade que não se esgota em Deus ou na Pátria), decisão tomada pelo organismo que reunirá as diversas nações do mundo (que entretanto se esfumaram linguística e culturalmente, mas que mantiveram grande parte das suas fronteiras físicas e económicas, de forma a alimentar os detentores do poder local).
O homem do futuro cultivará os seus ídolos de acordo com as exigências da época, de acordo com a velocidade rígida de um mundo com novas categorias espácio-temporais e epistemológicas (o Renascimento primitivo, ainda bastante tocado pela magia e pelo enigma, será recuperado e readaptado aos novos ídolos). O neo-Renascimento respirará ares apocalípticos e fomentará no homem do futuro a serenidade de quem sabe que a existência tem um sentido individual, ainda que trespassado de verdades idolátricas e, portanto, ilusórias.

solicita-se ao prezado público que preserve o bom estado destes jardins

"O que é que fica "resolvido"? Não ficarão para trás todas as questões da vida passada, como uma ramada que nos impede a visão? Não pensamos em cortá-la, nem sequer em desbastá-la. Passamos adiante, deixamo-la para trás e, à distância, ela é de facto mais abarcável, mas também mais indefinida, mais sombria e mergulhada em enigma."
Walter Benjamin, Rua de Sentido Único

coimbra

A despedida de Coimbra foi algo atabalhoada, com beijos e abraços rápidos, sem tempo para olhar para trás, sem saudades e lamechices excessivas.
O problema foi a viagem. Walter Benjamin não é das melhores coisas para quem se quer afastar da melancolia, não é decididamente das melhores leituras para quem deixa uma cidade por tempo indeterminado.
As imagens começaram a avolumar-se, as ruas começaram a entrar-me nas veias, as ruas de pedras e passos, de seios e solidão, de cerveja e distância, de dias e dias perdidos (ou achados) no lento desfiar do tempo. De repente, a lembrança do absurdo que é acordar todos os dias com vontade de mijar só porque o corpo diz que é isso que temos de fazer. E ainda assim o absurdo de haver amigos por quem vale a pena fazer alguns quilómetros. O absurdo de haver casas, projectos e ideias, fios de sentido com que tecemos o manto que nos cobre a cabeça. O absurdo de escolher o que somos em cada escolha que somos obrigados a fazer.
Mas felizmente vem o cansaço e conseguimos voltar a dormir, mesmo numa viagem sem regresso.

sexta-feira, julho 22, 2005

o homem do futuro III

Comunicando com o futuro.
Sim, é preciso mudar já.
Mas como? Para onde? Por onde devemos começar a transformar o homem? É de uma transformação que se trata? É de uma recuperação da autenticidade? É de um regresso às origens? É da valorização da existência individual?
A exterioridade absoluta, ainda que concebida como utopia, como extensão do humano que se leva a si próprio ao limite, é de facto assustadora, mas o homem do futuro não terá medo nem angústia, a sua vida será um consumo constante, alimentado por substâncias psicotrópicas e por objectos virtuais (sendo que todo o virtual é de alguma forma uma reactualização do real -- e vice-versa). Nas universidades passará a existir uma faculdade do desejo, dedicada ao estudo do consumo e à sua satisfação.
A perversidade da comunicação, sobretudo nos moldes em que é concebida actualmente, poderá estar relacionada com um paradoxo de difícil identificação fenomenológica, ao qual associo duas concepções que nem sempre são conciliáveis: por um lado, a fugacidade e vacuidade da comunicação, com tudo o que isto implica de reformulação das nossas categorias de tempo, espaço e verdade; embrenhado nesse movimento pelo movimento, caberá ao homem do futuro mover-se por mover-se, como uma espécie de força gravitacional misteriosa e sem centro. Por outro lado, e aqui começam os meus problemas, a nossa época é também uma das mais "fixas". Usada e abusada que foi a "civilização das imagens" como explicação de todos os males do mundo, temos por vezes dificuldade em pensar as categorias ontológicas que subjazem à imagem e sua disseminação planetária. O homem do futuro seguirá imagens e modelos de ser, ou seja, será segundo modos estabelecidos, adequados e verdadeiros. Portanto, aquilo que aos nossos olhos pode parecer um dificuldade teórica de conciliação entre movimento e fixidez, será para o homem do futuro a consumação da sua própria existência, o sentido para lá do sentido: mover-se na certeza e na segurança.

quarta-feira, julho 13, 2005

o homem do futuro

O homem-notícia será o homem do futuro.
Ao entardecer de cada dia e durante o horário nobre dos seus pensamentos, comunicará ao vazio aquilo que (in)justifica a sua vida: as informações mais importantes que recebeu, os acontecimentos que ficcionalmente determinaram o curso das suas acções, as imagens que deixou perante os outros.
Depois, no silêncio das grandes e das pequenas cidades, levará o garfo à boca, trocará olhares e fluidos, cumprirá os deveres cívicos, reservará o ócio para a afirmação de uma rebeldia escondida, ilusória, fornecida pelo sistema como modo de controlo social.
Os corpos serão cremados. Os obituários serão dados a conhecer por uma mailing list. Os familiares e amigos partilharão lágrimas virtuais.

formas de vida

O hábito é uma coisa pastosa.
A surpresa é um vidro partido.

terça-feira, julho 12, 2005

carrapateira

Hoje não havia fogo no Algarve, ou pelo menos junto à costa oeste algarvia. Muito pelo contrário, uma chuva miudinha pintalgava os óculos daqueles que gostam de olhar a chuva de Verão e abrem a boca em direcção ao céu.
A península rochosa que se forma entre a praia do Amado e a praia da Carrapateira estava particularmente bela, com todas as suas pequenas baías e penhascos, com um azul vivaz que transcendia do mar para os olhos dos homens e das mulheres que por ali passavam.
Havia uma máquina fotográfica na mala do carro. A máquina não saiu da mala do carro.
Não havia ondulação. Virado para oeste, debruçado sobre um penhasco, empurrado por um vento traseiro que me empurrava para oeste contra o azul vivaz do mar que me levava que me trazia por entre as pingas da chuva e o pó amansado pelas pingas da chuva e o vento que ia inútil para o meio do mar e levava cristas de pequenas ondas que babujavam na franja da areia e então perguntaste-me qualquer coisa e não sei se respondi