levante

textos sem sentido e outros

domingo, julho 15, 2007

inverness

Alguém citando alguém dizia “o mundo não é pequeno, é ridículo”. Lembrei-me imediatamente do Aleph, de Borges, mas não disse nada porque, além da cerveja, o que nos interessava nessa tarde de Verão à beira-mar era a conversa sobre as coincidências humanas e a forma como estas enchem de ridículo as ligações que fazem o sentido da vida. Não disse nada mas agora, enquanto preparo a viagem de Verão, enquanto pesquiso informações sobre o meu destino (e como preciso de viajar, como preciso desta viagem…), as ligações persistem e fazem-me ver como, de facto, o mundo não é pequeno, é ridículo.
Esse alguém que citava alguém sabe como por vezes os papéis têm de ser escritos e rasgados para que a angústia nos saia do bolso e das gavetas.
Portanto, deixo aqui esta longa citação, pois ela condensa tudo aquilo que às vezes tento dizer neste blog, num prolongamento infinito das ligações de sentido.


“Chego, agora, ao inefável centro do meu relato; começa aqui o meu desespero de escritor. Toda a linguagem é um alfabeto de símbolos cujo exercício pressupõe um passado que os interlocutores compartilham; co­mo transmitir aos outros o infinito Aleph, que a minha tímida memória mal abarca? Os místicos, em transe semelhante, gastam os símbolos: pa­ra significar a divindade, um persa fala de um pássaro que, de algum mo­do, é todos os pássaros; Alano de Insulis fala de uma esfera cujo centro está em todas as partes e a circunferência em nenhuma; Ezequiel fala de um anjo de quatro asas que, ao mesmo tempo, se dirige ao Oriente e ao Ocidente, ao Norte e ao Sul. (Não é em vão que rememoro essas incon­cebíveis analogias; alguma relação elas têm com o Aleph.) É possível que os deuses não me negassem o achado de uma imagem equivalente, mas esta informação ficaria contaminada de literatura, de falsidade. Mesmo porque o problema central é insolúvel: a enumeração, sequer parcial, de um conjunto infinito. Nesse instante gigantesco, vi milhões de actos agradáveis ou atrozes; nenhum me assombrou mais que o facto de todos ocuparem o mesmo ponto, sem sobreposição e sem transparência. O que os meus olhos viram foi simultâneo; o que transcreverei será sucessivo, pois a linguagem o é. Algo, no entanto, registarei.

Na parte inferior do degrau, à direita, vi uma pequena esfera furta­-cores, de brilho quase intolerável. Primeiro, supus que fosse giratória; depois, compreendi que esse movimento era uma ilusão produzida pelos vertiginosos espectáculos que encerrava. O diâmetro do Aleph seria de dois ou três centímetros, mas o espaço cósmico estava ali, sem diminui­ção de tamanho. Cada coisa (o cristal do espelho, digamos) era infinitas coisas, porque eu a via claramente de todos os pontos do universo. Vi o populoso mar, vi a aurora e a tarde, vi as multidões da América, vi uma prateada teia de aranha no centro de uma negra pirâmide, vi um quebra­do labirinto (era Londres), vi intermináveis olhos próximos perscrutando em mim como num espelho, vi todos os espelhos do planeta e nenhum me reflectiu, vi num pátio da Rua Soler os mesmos ladrilhos que, há trinta anos, vi no saguão de uma casa de Fray Bentos, vi cachos de uva, neve, tabaco, listas de metal, vapor de água, vi convexos desertos equatoriais e cada um dos seus grãos de areia, vi em Inverness uma mulher que não esquecerei, vi a violenta cabeleira, o altivo corpo, vi um cancro no peito, vi um círculo de terra seca numa vereda onde antes existira uma árvore, vi numa quinta de Adrogué um exemplar da primeira versão in­glesa de Plínio, a de Philemon Holland, vi, ao mesmo tempo, cada letra de cada página (em pequeno, eu costumava maravilhar-me com o facto das letras de um livro fechado não se misturarem e se perderem no decorrer da noite), vi a noite e o dia contemporâneo, vi um poente em Querétaro que parecia reflectir a cor de uma rosa em Bengala, vi o meu quarto sem ninguém, vi num gabinete de Alkmaar um globo terrestre entre dois espelhos que o multiplicam indefinidamente, vi cavalos de crinas redemoinhadas numa praia do mar Cáspio, na aurora, vi a delicada ossatura de uma mão, vi os sobreviventes de uma batalha enviando bi­lhetes-postais, vi numa vitrina de Mirzapur um baralho espanhol, vi as sombras oblíquas de alguns fetos no chão de uma estufa, vi tigres, êmbo­los, bisontes, marulhos e exércitos, vi todas as formigas que existem na terra, vi um astrolábio persa, vi numa gaveta da escrivaninha (e a letra fez-me tremer) cartas obscenas, claras, incríveis, que Beatriz dirigira a Carlos Argentino, vi um adorado monumento na Chacarita, vi a relíquia cruel do que deliciosamente fora Beatriz Viterbo, vi a circulação do meu escuro sangue, vi a engrenagem do amor e a modificação da morte, vi o Aleph, de todos os pontos, vi no Alpeh a terra, e na terra outra vez o Aleph e no Aleph a terra, vi o meu rosto e as minhas vísceras, vi o teu rosto e senti vertigem e chorei, porque os meus olhos tinham visto esse objecto secreto e conjectural cujo nome os homens usurpam, mas que nenhum homem olhou: o inconcebível universo.

Senti infinita veneração, infinita lástima.”

Jorge Luís Borges, O Aleph