levante

textos sem sentido e outros

sábado, julho 21, 2007

a Hora

Já por duas vezes este blog teve interrupções relativamente longas. A primeira devido a causas sentimentais: toda a gente sabe que sentir coisas (para não dizer sentir sentimentos) pode ser um problema gravíssimo para os seres humanos; descobri que essas coisas estavam a ridicularizar a minha escrita e decidi parar por uns meses. A segunda devido a causas profissionais: durante o estágio no ensino secundário, a sobrecarga de tarefas e a minha desorganização temporal nem sempre permitiram a respiração, quanto mais a escrita bloguística.
Nenhuma dessas causas pode servir de justificação para a paragem que agora se inicia. Talvez, apenas, o cansaço e a sensação aguda de que algo se esgotou neste blog e de que o tempo está maduro, pronto para novas colheitas. Talvez, também, o receio do novo momento de transformações e indefinições que se avizinha, o receio de em breve vir a escrever (de novo nas entrelinhas…) sobre as cidades e as pessoas que se aproximam e afastam. Talvez, ainda, a serenidade de um dever cumprido ao longo de quatro anos, um dever egocêntrico mas sem grandes pretensões, um jogo de escrita e dissimulações nem sempre compreendido, um dever para comigo mesmo que alguns amigos acompanharam e aos quais agradeço a atenção.
Deverei regressar em breve, e muito provavelmente com um outro blog que aqui será anunciado na devida altura.
Mas agora chegou a hora de parar e sair.


segunda-feira, julho 16, 2007

os livros

O jcb passou-me a bola, logo a mim que sou desleixado em relação aos jogos de equipa bloguísticos. Mas é uma modalidade de que gosto e vou fintar com cinco obras que por diversas razões me passaram pelas mãos no último ano, lidas ou relidas, mas que não são necessariamente “os livros da minha vida”:
1) Ludwig Wittgenstein: The Duty of Genius, de Ray Monk. É provavelmente a melhor biografia do filósofo austríaco, capaz de acompanhar simultaneamente a sua vida e o seu pensamento, num diálogo riquíssimo mas sem roçar aquela espécie de mitificação que por vezes esquece que os filósofos também são homens.
2) Directa, de Nuno Bragança. Do ponto de vista da experimentação da linguagem é menos inventivo do que A Noite e o Riso, mas as imagens pungentes e carnais estão lá. À primeira vista anda à volta do Estado Novo e de uma certa resistência, mas o tema mais subtil e incontornável é o Tempo. (Há um diálogo delicioso sobre Vila Real de Santo António.)
3) O Passo da Floresta, de Ernst Jünger. Poderia ser um ensaio datado pelo pós-guerra, mas não é. Nota-se que há ainda uma certa tensão e uma certa desconfiança em relação ao mundo (que são próprias de Jünger…), mas a metáfora do Titanic e da Floresta, representando um cepticismo fértil, tem talhado de forma marcante a minha “visão do mundo”. Uma passagem muito nietzscheana: “Ai daquele que recolhe desertos: ai daquele que não traz em si, e mesmo que seja apenas numa das suas células, a substância original, que garante sempre, uma vez mais, a fertilidade.” (Na última leitura descobri que é também um pequeno grande livro sobre o medo, as infiltrações do medo.)
4) Pena Capital, de Mário Cesariny e O Livro do Desassosego, de Fernando Pessoa. Um pela frescura, outro pela amplitude: um 2 em 1 a que volto sempre que as palavras me começam a secar.
5) Doutor Pasavento, de Enrique Vila-Matas. Há livros que nos caem nas mãos como se respondessem a uma pergunta. Perguntei: “existirá a pulsão do desaparecimento?” E o livro caiu-me nas mãos.
E passo a bola ao Mendonça, ao Pedro, ao Pathé, à mj e à Susaninha.

domingo, julho 15, 2007

inverness

Alguém citando alguém dizia “o mundo não é pequeno, é ridículo”. Lembrei-me imediatamente do Aleph, de Borges, mas não disse nada porque, além da cerveja, o que nos interessava nessa tarde de Verão à beira-mar era a conversa sobre as coincidências humanas e a forma como estas enchem de ridículo as ligações que fazem o sentido da vida. Não disse nada mas agora, enquanto preparo a viagem de Verão, enquanto pesquiso informações sobre o meu destino (e como preciso de viajar, como preciso desta viagem…), as ligações persistem e fazem-me ver como, de facto, o mundo não é pequeno, é ridículo.
Esse alguém que citava alguém sabe como por vezes os papéis têm de ser escritos e rasgados para que a angústia nos saia do bolso e das gavetas.
Portanto, deixo aqui esta longa citação, pois ela condensa tudo aquilo que às vezes tento dizer neste blog, num prolongamento infinito das ligações de sentido.


“Chego, agora, ao inefável centro do meu relato; começa aqui o meu desespero de escritor. Toda a linguagem é um alfabeto de símbolos cujo exercício pressupõe um passado que os interlocutores compartilham; co­mo transmitir aos outros o infinito Aleph, que a minha tímida memória mal abarca? Os místicos, em transe semelhante, gastam os símbolos: pa­ra significar a divindade, um persa fala de um pássaro que, de algum mo­do, é todos os pássaros; Alano de Insulis fala de uma esfera cujo centro está em todas as partes e a circunferência em nenhuma; Ezequiel fala de um anjo de quatro asas que, ao mesmo tempo, se dirige ao Oriente e ao Ocidente, ao Norte e ao Sul. (Não é em vão que rememoro essas incon­cebíveis analogias; alguma relação elas têm com o Aleph.) É possível que os deuses não me negassem o achado de uma imagem equivalente, mas esta informação ficaria contaminada de literatura, de falsidade. Mesmo porque o problema central é insolúvel: a enumeração, sequer parcial, de um conjunto infinito. Nesse instante gigantesco, vi milhões de actos agradáveis ou atrozes; nenhum me assombrou mais que o facto de todos ocuparem o mesmo ponto, sem sobreposição e sem transparência. O que os meus olhos viram foi simultâneo; o que transcreverei será sucessivo, pois a linguagem o é. Algo, no entanto, registarei.

Na parte inferior do degrau, à direita, vi uma pequena esfera furta­-cores, de brilho quase intolerável. Primeiro, supus que fosse giratória; depois, compreendi que esse movimento era uma ilusão produzida pelos vertiginosos espectáculos que encerrava. O diâmetro do Aleph seria de dois ou três centímetros, mas o espaço cósmico estava ali, sem diminui­ção de tamanho. Cada coisa (o cristal do espelho, digamos) era infinitas coisas, porque eu a via claramente de todos os pontos do universo. Vi o populoso mar, vi a aurora e a tarde, vi as multidões da América, vi uma prateada teia de aranha no centro de uma negra pirâmide, vi um quebra­do labirinto (era Londres), vi intermináveis olhos próximos perscrutando em mim como num espelho, vi todos os espelhos do planeta e nenhum me reflectiu, vi num pátio da Rua Soler os mesmos ladrilhos que, há trinta anos, vi no saguão de uma casa de Fray Bentos, vi cachos de uva, neve, tabaco, listas de metal, vapor de água, vi convexos desertos equatoriais e cada um dos seus grãos de areia, vi em Inverness uma mulher que não esquecerei, vi a violenta cabeleira, o altivo corpo, vi um cancro no peito, vi um círculo de terra seca numa vereda onde antes existira uma árvore, vi numa quinta de Adrogué um exemplar da primeira versão in­glesa de Plínio, a de Philemon Holland, vi, ao mesmo tempo, cada letra de cada página (em pequeno, eu costumava maravilhar-me com o facto das letras de um livro fechado não se misturarem e se perderem no decorrer da noite), vi a noite e o dia contemporâneo, vi um poente em Querétaro que parecia reflectir a cor de uma rosa em Bengala, vi o meu quarto sem ninguém, vi num gabinete de Alkmaar um globo terrestre entre dois espelhos que o multiplicam indefinidamente, vi cavalos de crinas redemoinhadas numa praia do mar Cáspio, na aurora, vi a delicada ossatura de uma mão, vi os sobreviventes de uma batalha enviando bi­lhetes-postais, vi numa vitrina de Mirzapur um baralho espanhol, vi as sombras oblíquas de alguns fetos no chão de uma estufa, vi tigres, êmbo­los, bisontes, marulhos e exércitos, vi todas as formigas que existem na terra, vi um astrolábio persa, vi numa gaveta da escrivaninha (e a letra fez-me tremer) cartas obscenas, claras, incríveis, que Beatriz dirigira a Carlos Argentino, vi um adorado monumento na Chacarita, vi a relíquia cruel do que deliciosamente fora Beatriz Viterbo, vi a circulação do meu escuro sangue, vi a engrenagem do amor e a modificação da morte, vi o Aleph, de todos os pontos, vi no Alpeh a terra, e na terra outra vez o Aleph e no Aleph a terra, vi o meu rosto e as minhas vísceras, vi o teu rosto e senti vertigem e chorei, porque os meus olhos tinham visto esse objecto secreto e conjectural cujo nome os homens usurpam, mas que nenhum homem olhou: o inconcebível universo.

Senti infinita veneração, infinita lástima.”

Jorge Luís Borges, O Aleph

o homem que vira

O homem que vira caminha nas ruas ofegantes da cidade geométrica. O homem que vira é um homem que caminha a passos largos, ligeiros, respirando com aflição. De quando em vez dá pequenas voltas de 180º ou 360º. Às vezes vira apenas metade e segue no sentido anterior, outras vezes vira completamente e segue no sentido anterior. Outras ainda, vira apenas metade e inverte o sentido da marcha. Na minha humilde opinião de narrador, esta última modalidade demonstra uma profunda falta de orientação.
O homem que vira passa os dias a caminhar, ora na praça, ora no caminho para Monte Gordo, ora passando pela porta das pessoas que por aqui habitam. O homem que vira também fala, embora raramente. Pede cigarros e diz “vira-te”, sobretudo aos putos que sabem que o homem que vira vive numa grande solidão e precisa de partilhar as coisas importantes da sua vida. Ninguém que eu conheça sabe exactamente por que razões obscuras o homem que vira começou a virar. E tudo o que não tem explicação pertence ao reino da ficção e da loucura.

segunda-feira, julho 02, 2007

toma

Este post, tal como o anterior, surge nas entrelinhas do tempo, quando este insiste em mostrar a sua incapacidade de atender a todas as ocupações que assaltam os seres humanos que julgam ser capazes de fazer tudo e mais alguma coisa. Este texto não deveria existir, não tem grande assunto, é feito à pressa. Não gosto de escrever à pressa. Raramente escrevo à pressa. É tarde, é noite, a lua é cheia (mas isto já é um assunto). Este texto não tem intenções, não tem assuntos, mas talvez surja do impulso contraditório e provocador que todos nós, de algum modo, possuímos. Este texto não deveria existir, mas existe, faz caretas ao relógio e diz: "toma Tempo, que a mim não me devoras tu!"

quinta-feira, junho 28, 2007

a gramática

assim sem nome sem memória sem passado sem futuro sem destino sem oxigénio sem nada para dizer sem ideias sem sentimentos sem frio sem calor sem sorriso sem choro sem grito sem cores sem água sem terra sem mágoa sem ressentimento sem sentido
assim sem pontuação enquanto espero pela campaínha

sexta-feira, junho 22, 2007

histórias realmente curtas - 6

Há um homem que trabalha longe de casa e costuma fazer muitas viagens de carro. Numa sexta-feira, enquanto voltava a casa, extremamente cansado do dia de trabalho no departamento de contabilidade da empresa de construção civil, as pálpebras superiores insistiam em cair sobre as inferiores, o que dificultava bastante a visão e a vigília. Contudo, como o homem já estava farto de conduzir, pensou que não seria mau se descansasse um pouco. Então fechou os olhos. Quando acordou, estava a entrar na garagem de sua casa. Passado um mês recebeu por correio uma multa de excesso de velocidade. Reclamou junto da DGV, dizendo que enquanto dorme não conduz a mais de 80 Km/h. A funcionária respondeu que a ocorrência passara-se numa zona em que não era permitido circular a mais de 60 Km/h, acrescentando que os sinais servem para separar o sonho da realidade. E então o homem pagou a multa.

sábado, junho 16, 2007

histórias realmente curtas - 5

Há uma mulher que trabalha longe de casa e costuma fazer muitas viagens de carro. Numa sexta-feira, enquanto voltava a casa, extremamente cansada do dia de trabalho no departamento de contabilidade da empresa de construção civil, as pálpebras superiores insistiam em cair sobre as inferiores, o que dificultava bastante a visão e a vigília. Contudo, como a mulher já estava farta de conduzir, pensou que não seria mau se descansasse um pouco. Então fechou os olhos. Quando acordou, estava a entrar na garagem de sua casa. Passado um mês recebeu por correio uma multa de excesso de velocidade. Não reclamou.

domingo, junho 10, 2007

histórias realmente curtas - 4

Um dia, há muito tempo atrás, ainda as palavras não haviam encontrado todo o seu sentido, dois homens caminhavam por uma vereda. Chegaram a uma bifurcação. Não conseguiram chegar a um acordo quanto ao caminho a seguir. Um deles fechou os olhos e disse “a linguagem é uma fonte de mal-entendidos”. O outro não disse nada, pegou numa pedra e bateu com força na cabeça do seu acompanhante, derrubando-o. Seguiu pela direita e sentiu-se livre.

sábado, junho 09, 2007

histórias realmente curtas - 3

A criança e o adulto, sentados:
Adulto: quantos anos tens?
Criança: estes. (levantando três dedos) E tu?
Adulto: eu tenho mais, mais do que os dedos das mãos. Tenho muitos dedos.
Criança: Uhm…?
Adulto armado aos cucos: Se os meus dedos são maiores sou mais velho que tu. Olha. (levantando o dedo indicador)
Criança: Uhm… (compara o seu dedo com o do adulto e aceita)
Adulto: o que importa é o tamanho dos dedos.
Criança: (põe-se em pé na cadeira, levanta o braço direito e espeta o indicador em direcção ao tecto) Sou mais velho que tu!

segunda-feira, junho 04, 2007

reler, relembrar

"Também a arte dionisíaca nos quer convencer da eterna alegria que está ligada à existência; somente não devemos procurar esta alegria nas aparências, mas atrás das aparências. Devemos reconhecer que tudo quanto nasce deve estar pronto para um doloroso declínio, que somos forçados a mergulhar os nossos olhos no aspecto horrível da existência individual – e no entanto o terror não nos deve gelar: uma consolação metafísica arranca-nos momentaneamente à engrenagem das migrações efémeras. Somos verdadeiramente, por curtos instantes, a própria essência primordial, e sentimos o desejo e a alegria inesperada da existência; a luta, a tortura, o aniquilamento das aparências nos parecem de ora avante como necessárias, em frente da intemperante profusão de inumeráveis formas de vida que se chocam e se comprimem, na presença da fecundidade superabundante da Vontade universal. O aguilhão furioso destes tormentos vem ferir-nos no próprio momento em que nos sentimos, de algum modo, identificados com a imensurável alegria primordial da existência, onde pressentimos, no êxtase dionisíaco, a imutabilidade e a eternidade desta alegria. A despeito da piedade, gozamos a felicidade de viver, não quando indivíduos mas quando confundidos e absolvidos na alegria criadora da vida total, única."

Nietzsche, A Origem da Tragédia, p. 134

domingo, junho 03, 2007

intertextualidades

A SEGÓVIA

Muita segóvia batem estes almas do diabo
no escuro da cama
lépidas mãos sob a coberta os solitários

mas eu que os via e fui deles parte peço
piedade quanta haja para quem
deixou a mulher longe piedade para as fotos
desnudas os calendários sexy peço um pouco
de piedade isto chama-se Nambuangongo
não podendo ser de outro modo o que fazem no escuro
ocultam nas cartas como se quisessem deixar antes dito

sabes lá tu o amor
piedade para o desvio natural para a garganta
seca depois da emboscada

sul cuor della terra (Quasimodo)
ognuno sta solo sul cuor della terra
naquele terceto ao pôr-do-sol

os solitários da segóvia da mata


Poema de Fernando Assis Pacheco escrito em 1973, in Lote de Salvados (incluído na antologia A Musa Irregular)

histórias realmente curtas - 2

Em Junho, quando as ervas começam a secar, as pessoas do campo têm por costume cortá-las, de modo a libertar os caminhos e impedir a acumulação de bicharada. Uma senhora de Monchique encontrava-se então a usar a gadanha para cortar as ervas quando, de repente, olha para o lado e vê uma coisa comprida e peluda a agitar-se, esmorecendo progressivamente. Mas só quando ouviu os latidos de um cachorro percebeu que havia cortado o rabo da mais recente aquisição da casa. O pobre do bicho não conhecia ainda os costumes das pessoas do campo.

histórias realmente curtas - 1

Havia um homem que, nos anos 50 do século passado, ia fazer as ceifas de trigo ao Alentejo. Esse homem não convivia mal com as especificidades da natureza, mas um dia em que se encontrava mais aziago irritou-se bastante com as moscas que lhe assaltavam a pele suada. Já a ceifa ia longa quando, mais uma vez nesse dia, gesticulou freneticamente, procurando enxotá-las. Só que desta vez a foice não cortou o trigo nem as moscas nem o ar, mas a ponta do seu nariz.

segunda-feira, maio 28, 2007

super

Obrigado pela dica. Confesso que fiquei indeciso entre a série Harlequin Everlasting Love e a Harlequin Superromance, mas acabei por me inclinar para a segunda, sobretudo para esta jóia.

domingo, maio 27, 2007

voltar

I
Voltar exactamente pela mesma linha, percorrer exactamente os mesmos quilómetros, fazer as mesmas paragens. Maior simetria de percurso seria impossível. Mas ainda assim (paradoxo das viagens) voltar para um sítio que já não existe, para uma casa que a cada dia, a cada semana, se desloca. Voltar para uma cidade onde a estranheza (questão urbana, humana?) se infiltra nas veias do quotidiano. Voltar para onde? Para quê?
Em todas as viagens, mas sobretudo nas mais longas, o que me custa verdadeiramente é o regresso, talvez por saber que regresso a um mesmo que é já sempre outro, ainda que nada na ordem natural das coisas se tenha alterado. E sentir tudo isto com uma acuidade dérmica, como se de pequeníssimas agulhas se tratasse. E saber que as picadas são momentâneas, em favor de uma certa saúde.
II
Talvez isto, esta divagação melancólica, me tenha surgido porque o comboio passou pela zona de Bias, entre Tavira e Olhão, atravessando a ponte ferroviária que há alguns anos atrás (10, 15, 20…) eu cruzava, por baixo e num outro sentido, de chinelos e calções, baldes para conquilhas e lingueirão, em direcção à ria e ao mar, ali onde a costa é um extenso areal que não tem fim. Que nunca teve fim. Se a minha infância teve um local de férias, só pode ter sido esse.
III
Mas este voltar de que falo não tem nada de nostálgico. A infância é uma divisão encerrada. Continuo, ainda hoje, sem saber o que é isso das inocências e das felicidades e das liberdades das tenras idades.
IV
No fundo, o que me interessa é a imagem de alguém que viaja num comboio à sexta-feira, o dia propício aos regressos. Levanta os olhos do ípsilon (também nos jornais há mudanças, por vezes para uma cacofonia ao sabor dos tempos), reconhece a paisagem, os caminhos por entre lodo e viveiros, as casas dos pescadores, a barreira dunal lá ao fundo. Mas o comboio é o tempo e o tempo, mesmo na linha do Algarve, é veloz. A imagem dissolve-se. Alguém volta a pousar os olhos no suplemento para-literário. Ou, talvez, sim!, lesse O Imortal de Borges, esse que foi todos e não foi ninguém (“Palavras, palavras deslocadas e mutiladas, palavras de outros, foi a pobre esmola que lhe deixaram as horas e os séculos”). Ou talvez nunca tivesse levantado os olhos. Ou talvez nunca ninguém tivesse passado férias em Bias. Que sítio é esse? Existe? Talvez alguém visse esse nome escrito a letras frugais num apeadeiro que não merece paragem. Talvez imaginasse um local adequado a férias de infância. Talvez houvesse camaleões e mergulhos no tanque das regas, o sol refulgindo nas peles imberbes, descobertas pelo levante. Talvez houvesse tudo isto ou nada disto.
V
Voltar é uma construção incessante. Voltar e sentir que a vida é um manto de Penélope que jamais se tece com linhas simétricas e seguras, mas que ainda assim não se pode deixar de esperar (a ilusão, a esperança) a seta de Ulisses. Essa é a única agulha que nunca nos sairá da pele.

segunda-feira, maio 21, 2007

ir

Pela primeira vez desde há alguns meses, hoje irei fazer a viagem de comboio entre Portimão e Vila Real de Santo António. Confesso que já tinha saudades. Apesar da demora (3 horas), apesar do cheiro constante a combustível queimado, apesar da sempre presente possibilidade de uma pedra embater no vidro, estilhaçando-o sobre os passageiros (o que não é agradável, garanto), apesar das trocas e das esperas, apesar dos companheiros indesejados, apesar de tudo isto e mais alguma coisa, confesso que já tinha saudades dos rostos que se deixam embalar pela melancolia da paisagem ferroviária.

sexta-feira, maio 18, 2007

o quisto e o cristo.

No Hospital de Jesus, no dia em que os crentes e os supersticiosos celebram a sua ascensão aos céus, há um homem de carne e osso que está deitado numa maca à espero que o corpo lhe seja perfurado por todos os intrumentos necessários à pureza (o conceito para dizer algo que não tem nada mais do que o que está definido metafisicamente como essencial para atingir o bem e a saúde supremos).
Mandam-lhe abrir os braços, espetam-lhe uma seringa com anestesia numa mão, espetam-lhe uma intravenosa para o soro na outra. Faz uma piada evitável acerca de Cristo e só depois, após uns risos tímidos das mulheres de bata e máscara que o rodeiam, repara no crucifixo que o observa da parede. Uma dessas mulheres agarra-lhe num tornozelo e envolve-o com uma tira de tecido que aperta porque é essa a sua função. Há que medir a tensão. Há que manter as pernas quietas, como se pregadas à maca. Uma outra mulher de bata e máscara (ou a mesma) aproxima-se do fundo da sala, empunhando alguns fios com ventosas. E enquanto lhe espeta a primeira ventosa no peito, aproxima os lábios do seu ouvido e sussurra-lhe "ora vamos lá ver como está esse coração".