levante

textos sem sentido e outros

segunda-feira, maio 28, 2007

super

Obrigado pela dica. Confesso que fiquei indeciso entre a série Harlequin Everlasting Love e a Harlequin Superromance, mas acabei por me inclinar para a segunda, sobretudo para esta jóia.

domingo, maio 27, 2007

voltar

I
Voltar exactamente pela mesma linha, percorrer exactamente os mesmos quilómetros, fazer as mesmas paragens. Maior simetria de percurso seria impossível. Mas ainda assim (paradoxo das viagens) voltar para um sítio que já não existe, para uma casa que a cada dia, a cada semana, se desloca. Voltar para uma cidade onde a estranheza (questão urbana, humana?) se infiltra nas veias do quotidiano. Voltar para onde? Para quê?
Em todas as viagens, mas sobretudo nas mais longas, o que me custa verdadeiramente é o regresso, talvez por saber que regresso a um mesmo que é já sempre outro, ainda que nada na ordem natural das coisas se tenha alterado. E sentir tudo isto com uma acuidade dérmica, como se de pequeníssimas agulhas se tratasse. E saber que as picadas são momentâneas, em favor de uma certa saúde.
II
Talvez isto, esta divagação melancólica, me tenha surgido porque o comboio passou pela zona de Bias, entre Tavira e Olhão, atravessando a ponte ferroviária que há alguns anos atrás (10, 15, 20…) eu cruzava, por baixo e num outro sentido, de chinelos e calções, baldes para conquilhas e lingueirão, em direcção à ria e ao mar, ali onde a costa é um extenso areal que não tem fim. Que nunca teve fim. Se a minha infância teve um local de férias, só pode ter sido esse.
III
Mas este voltar de que falo não tem nada de nostálgico. A infância é uma divisão encerrada. Continuo, ainda hoje, sem saber o que é isso das inocências e das felicidades e das liberdades das tenras idades.
IV
No fundo, o que me interessa é a imagem de alguém que viaja num comboio à sexta-feira, o dia propício aos regressos. Levanta os olhos do ípsilon (também nos jornais há mudanças, por vezes para uma cacofonia ao sabor dos tempos), reconhece a paisagem, os caminhos por entre lodo e viveiros, as casas dos pescadores, a barreira dunal lá ao fundo. Mas o comboio é o tempo e o tempo, mesmo na linha do Algarve, é veloz. A imagem dissolve-se. Alguém volta a pousar os olhos no suplemento para-literário. Ou, talvez, sim!, lesse O Imortal de Borges, esse que foi todos e não foi ninguém (“Palavras, palavras deslocadas e mutiladas, palavras de outros, foi a pobre esmola que lhe deixaram as horas e os séculos”). Ou talvez nunca tivesse levantado os olhos. Ou talvez nunca ninguém tivesse passado férias em Bias. Que sítio é esse? Existe? Talvez alguém visse esse nome escrito a letras frugais num apeadeiro que não merece paragem. Talvez imaginasse um local adequado a férias de infância. Talvez houvesse camaleões e mergulhos no tanque das regas, o sol refulgindo nas peles imberbes, descobertas pelo levante. Talvez houvesse tudo isto ou nada disto.
V
Voltar é uma construção incessante. Voltar e sentir que a vida é um manto de Penélope que jamais se tece com linhas simétricas e seguras, mas que ainda assim não se pode deixar de esperar (a ilusão, a esperança) a seta de Ulisses. Essa é a única agulha que nunca nos sairá da pele.

segunda-feira, maio 21, 2007

ir

Pela primeira vez desde há alguns meses, hoje irei fazer a viagem de comboio entre Portimão e Vila Real de Santo António. Confesso que já tinha saudades. Apesar da demora (3 horas), apesar do cheiro constante a combustível queimado, apesar da sempre presente possibilidade de uma pedra embater no vidro, estilhaçando-o sobre os passageiros (o que não é agradável, garanto), apesar das trocas e das esperas, apesar dos companheiros indesejados, apesar de tudo isto e mais alguma coisa, confesso que já tinha saudades dos rostos que se deixam embalar pela melancolia da paisagem ferroviária.

sexta-feira, maio 18, 2007

o quisto e o cristo.

No Hospital de Jesus, no dia em que os crentes e os supersticiosos celebram a sua ascensão aos céus, há um homem de carne e osso que está deitado numa maca à espero que o corpo lhe seja perfurado por todos os intrumentos necessários à pureza (o conceito para dizer algo que não tem nada mais do que o que está definido metafisicamente como essencial para atingir o bem e a saúde supremos).
Mandam-lhe abrir os braços, espetam-lhe uma seringa com anestesia numa mão, espetam-lhe uma intravenosa para o soro na outra. Faz uma piada evitável acerca de Cristo e só depois, após uns risos tímidos das mulheres de bata e máscara que o rodeiam, repara no crucifixo que o observa da parede. Uma dessas mulheres agarra-lhe num tornozelo e envolve-o com uma tira de tecido que aperta porque é essa a sua função. Há que medir a tensão. Há que manter as pernas quietas, como se pregadas à maca. Uma outra mulher de bata e máscara (ou a mesma) aproxima-se do fundo da sala, empunhando alguns fios com ventosas. E enquanto lhe espeta a primeira ventosa no peito, aproxima os lábios do seu ouvido e sussurra-lhe "ora vamos lá ver como está esse coração".

terça-feira, maio 15, 2007

avaliação

Não seria necessário um teste sobre aprendizagem e memória para saber que eles sabem tão bem ou melhor do que eu a necessidade do esquecimento.

domingo, maio 06, 2007

manual de utilidade social

1. Acordar.
2. Sair de manhã para passear um canídeo - que por vezes parece um cão - entre o mar e a ria.
3. Enquanto o animal corre, fotografar um pedaço de lama ressequida.
4. Perceber a estupidez e a inutilidade de fotografar um pedaço de lama ressequida só porque o padrão é giro e coiso e tal...
5. Perceber que quase tudo é uma fotografia de lama ressequida: a filosofia, as estéticas, a pancada das imagens, as teses, os textitos, os poeminhas, os "projectos", os blogues mascarados de profundidade e silêncio, a vontade de incomodar o mundo.
6. Sentir um leve deslocamento nos intestinos.
7. Considerar que o deslocamento dos intestinos se deve ao vinho do jantar da noite anterior e não a uma manifestação fisiológica de angústia, porque porra! ainda agora começou o dia e o dia até está bonito.
8. Lembrar-se do título de um dos livros que está na mesa-de-cabeceira, "Moradas Inúteis".
9. Lembrar-se de conversas recentes e relacionar tudo com tudo como quem mexe massa de bolo antes de ir ao forno.
10. Prometer acabar com esta mania estúpida de encontrar ligações onde apenas existe o acaso e a repetição. (Desligar o Leonard Cohen que por acaso apareceu a cantar no media player)
11. Prometer acabar com as metáforas.
12. E já agora aligeirar a ironia.
13. Almoçar com o absurdo entre uma coxa de galinha.
14. Ouvir um familiar, pode ser a mãe, porque hoje até é o seu dia, concluir que de uma forma ou de outra teremos sempre frustrações e que não está determinado que o sentido prático da vida seja a melhor coisa do mundo, mas cada um sabe de si.
15. Agradecer como um bom filho e perceber que o que ela de facto dizia é “Desenmerda-te que 1,85 m é tamanho suficiente para aguentar tempestades!”
16. Desistir de acabar com as metáforas, porque senão isto também não tinha piada.
17. Prometer arranjar uma moça roliça que faça bons assados, que tenha um quociente de insegurança abaixo dos 4.9, que veja todas as novelas da noite e seja capaz de trocar meia-dúzia de palavras antes de adormecer no sofá porque o dia cansativo…
18. Escrever um texto no blog assim a fugir para o rabugento onde pela primeira vez assume que é de si mesmo que fala e não de personagens e vivências imaginadas.
19. Sair com o canídeo para o passeio da tarde.
20. Não levar máquina fotográfica, não pensar.

terça-feira, maio 01, 2007

apontamento de viagem

Imagino a feira de Sevilha com um mar de gente a comer, beber e dançar. Os cavalos a circular nas ruas exibindo cavaleiros e donzelas sorridentes. As tendas cada vez mais abertas pois o álcool infiltra-se nas restrições e no pudor. As sevilhanas apuradas com folhos e maquilhagem. A roda gigante a espalhar luzes no céu. O fumo dos churros como nevoeiro denso. Os ricos e os pobres. Os novos e os velhos. E as ciganas. E as bugigangas. E os turistas constrangidos porque não podem e não sabem entrar na festa. Imagino um mar de gente a desabar pela madrugada dentro como se o mundo e a cidade e a feira fossem apenas um.