levante

textos sem sentido e outros

sábado, abril 28, 2007

orgasmo adiado

Agora que as malhas do tempo se alargaram e finalmente, passados tantos meses, consigo circular pelas águas do mundo com relativa liberdade, fiz aquilo que prometi a mim mesmo desde Setembro. Fui a Sevilha.
Em Setembro queria ver uma obra de Louise Bourgeois que pertence à colecção do Centro Andaluz de Arte Contemporânea, Cell (Arch of Hysteria). Trabalhei sobre esta artista, li os seus textos, conheci as obsessões que utiliza como fonte criativa, a vida confrontou-me com o peso dessas obsessões, que de repente não se referiam apenas a obras de arte mas à Vida, àquilo que une todos os seres humanos de forma silenciosa. Portanto, pareceu-me óbvio que rumasse à obra que, fisicamente, se encontrasse mais próxima.
Mas agora, em Abril, a obra estava guardada no armazém. Havia a excelente retrospectiva de Daido Moriyama e a provocadora mostra do "grupo" Fluxus, mas de Bourgeois nada, apenas a certeza de uma presença oculta.
Regressado a casa, não me resta senão ver uma reprodução em livro e ler o comentário anexo: "A cela com a figura do arco de histeria lida com a dor emocional e psicológica. No arco de histeria, o prazer e a dor fundem-se num estado de felicidade. O seu arco - o crescimento da tensão e o aliviar da tensão - é sexual. É um substituto do orgasmo, sem qualquer acesso ao sexo. Ela cria o seu próprio mundo e é muito feliz. Em nenhum lado está escrito que uma pessoa nestes estados esteja a sofrer. Funciona como uma cela autoconstruída onde as regras da felicidade e da inquietação nos são estranhas.
A tábua de ferro representa o alisar das dobras, a diminuição da tensão à medida que o sono se aproxima. Há o grande sono, que é a morte, e o pequeno sono que se segue ao orgasmo."

errata a sabedorias

Onde aparece "stôr" leia-se "pressor".

terça-feira, abril 24, 2007

sabedorias

Hoje, sem saber responder a uma questão do teste que pedia uma articulação entre cidadania e democracia, e enquanto olhava pela janela, um aluno diz-me em voz alta, quebrando o silêncio:
"Ó stôr, hoje o dia tá levante. Já viu o ar?"
E eu, que andara todo o dia distraído com ninharias, nem sequer fui capaz de o mandar calar. Olhei também pela janela, sorri e agradeci em surdina.

sábado, abril 21, 2007

a blasfémia

Já lá vai o tempo em que ousava escrever ou dizer publicamente qualquer coisa sobre mulheres. Fi-lo uma vez neste blog, embora desde logo soubesse que devia ser a única.
É um exercício extremamente fútil e que pode adquirir contornos perigosos.
Há alguns dias, numa conversa em que algumas participavam, deixei-me entusiasmar pelo clima descontraído e disse mais ou menos a brincar que até conhecia qualquer coisa da psicologia feminina. A resposta foi fulminante:
“Ah sim, então e de que premissas partes?”
(com um sorriso irónico de quem, daí em diante, estaria disposta a demonstrar, se necessário pelos meios mais brutais, que eu havia pisado o risco)
Socorri-me de toda a retórica e safei-me com um esforçado:
“Parto da ausência de premissas.”
(resposta que aliviou a tensão suscitada pela blasfémia e me levou a pensar melhor nas palavras durante o resto da noite)
E sem querer, pela primeira vez desde há muito tempo, percebi que (não) sabia alguma coisa. Assim como quem sabe que o infinito humano deixa de o ser a partir do momento em que o determinamos. Ou que há coisas que pura e simplesmente nos escapam pelas frinchas da razão.

segunda-feira, abril 16, 2007

histórias

Depois de ver o filme 300, e como forma de terapia visual, achei que poderia ser bom repousar os olhos no Heródoto (1º volume das Histórias) que me espreita da prateleira. Mas não o fiz e permaneço embrenhado em imagens.

domingo, abril 15, 2007

as batalhas e o silêncio

Antes de se alistar como voluntário para a 1ª Guerra Mundial, Wittgenstein procurara afincadamente encontrar as bases da lógica, aquelas que, segundo a sua imodéstia e impertinência, iriam revolucionar a filosofia. Ao longo da guerra e enquanto permaneceu na retaguarda, ocupando funções logísticas, o Tractatus Logico-Philosophicus foi ganhando a forma de um grande livro sobre lógica, linguagem e possibilidades de representação do mundo.
Contudo, após ter participado, a seu pedido, num regimento de artilharia do exército austríaco que combateu na frente russa, perto da fronteira romena, algo se alterou no seu projecto. Em Junho de 1916, a Rússia lança a “Ofensiva Brusilov”, que causou enormes baixas no exército austríaco. No dia 11 desse mesmo mês, as suas reflexões sobre os fundamentos da lógica são interrompidas pela questão: “o que é que eu sei sobre Deus e o sentido da vida?” A partir desse dia, os apontamentos de Wittgenstein começam também a abranger questões relacionadas com o sentido da vida, a ética e a estética, questões que viriam a ocupar as últimas proposições do Tractatus.
Tal como os fundamentos da lógica não podiam ser ditos mas apenas mostrados, assim também o sentido da vida não podia ser dito mas apenas mostrado na linguagem.
Estes pequenos desvios darão ainda mais pertinência à bem conhecida injunção com que termina o Tractatus:
“As minhas elucidações são elucidativas pelo facto de que aquele que as compreende as reconhece afinal como falhas de sentido, quando por elas se elevou para lá delas. (Tem que, por assim dizer, deitar fora a escada, depois de ter subido por ela).
Tem que transcender estas proposições; depois vê o mundo a direito.
Acerca daquilo de que se não pode falar, tem que se ficar em silêncio.”
Esta injunção foi feita para ser respeitada, não em relação ao silêncio, mas em relação à compreensão de que há coisas que pura e simplesmente não se conseguem dizer.
Mas isto não é uma regra, por mais imperativa que possa parecer. Na vida como na blogosfera exigimos palavras sem sentido, pois são elas que, por entre batalhas, nos vão mostrando o sentido.

terça-feira, abril 10, 2007

hoje

Hoje seria um mau dia para recuperar metáforas, reescrever, por exemplo, a frase "o tempo e a maré não esperam por nenhum homem". Pois hoje o corpo é leve, como se partisse para uma viagem sem fronteiras, e as metáforas são a sua falência, como se o retalhassem de desvios e becos sem saída. Hoje apenas existe o presente.

quarta-feira, abril 04, 2007

o violador da luz

No fim-de-semana passado conheci um homem cujo principal passatempo é entrar em fotografias. Ele não posa para fotografias, mas muito particularmente entra, irrompe para dentro delas como se violasse a luz que as constrói. Apercebi-me dele no Castelo de São Jorge: colocava-se sistematicamente diante das câmaras dos turistas, ora passava com lentidão por detrás daqueles que posavam para a fotografia, ora encostava-se à muralha que ia passar a paisagem fotográfica. Mas nunca olhava para a câmara. Tudo muito subtil, sem aflições nem usurpações de privacidade. Fez o mesmo comigo, entrou-me em pelo menos três paisagens e dois retratos de família, tirados em momentos muito diferentes. Apercebi-me daquela presença estranha e comecei a persegui-lo, e só então, acompanhando de perto os seus movimentos, compreendi o que andava a fazer. Abordei-o e questionei-o acerca de tão estranho comportamento. Não se mostrou surpreendido, mas muito satisfeito por alguém ter percebido que ele entrava em fotografias. Desde o início do seu passatempo, há três anos, apenas cinco pessoas o haviam descoberto. Explicou-me que gostava de se imaginar nos álbuns e nos ficheiros daqueles que o fotografavam sem dele se aperceberem, e que dessa forma tinha uma existência mais plena. Disse-me: “Já entrei em milhares e milhares de fotografias, estou disseminado nas casas de pessoas que nem sonham que existo, estou presente em todo o mundo, ainda que anónimo. Mas estou lá, existo por detrás dos rostos que lhes são conhecidos, existo nas ruas onde apenas vêem transeuntes. Existo milhares de vezes, e isso dá-me um enorme prazer.”