levante

textos sem sentido e outros

domingo, janeiro 28, 2007

mineiro

Escavar por dentro dos conceitos não é escrever palavras. Nos interstícios do sentido, antes que as palavras se refiram às coisas e antes que as coisas apareçam na plenitude da existência, visíveis, imponentes, há um homem que escava, de picareta na mão e lâmpada no capacete. E isto diz tudo sobre as condições da linguagem: há um trabalho incessante e invisível, um trabalho no interior da terra (ou no cérebro, ou no corpo) que envolve o conceito no seu dinamismo. Por exemplo: escrevo a palavra vida e há um conceito que trabalha por dentro dela e que liberta uma multiplicidade de sentidos; o conceito é de difícil fixação pois é extremamente abrangente. Escrevo a palavra quadrado e o conceito fixa-se imediatamente. Toda a história linguisticamente descritível da humanidade resume-se a este jogo. Assim deus, assim morte, assim amor, assim livro, assim estante, assim copo, etc. Em infinitas variações e articulações. Um jogo onde a filosofia se sente em casa porque é ela que lhe descobre as regras. A literatura não se sente em casa pois não procura a clareza das regras, mas sim o turbilhão, o dinamismo onde o sentido é mais vivo, e aí há sempre deconforto.
As condições da visibilidade colocam outros problemas, outro tipo de escavação.

domingo, janeiro 21, 2007

mosteiro

Silêncio. Do fundo dos claustros um ritmo aproxima-se, ecoa, dissolve-se nas sombras, apazigua os espíritos que nunca se souberam inquietos porque nunca se souberam corpos. Os sinos são injecções de silêncio, agulhas de peso que penetram a pele e se abatem sobre as entranhas, desoprimindo o peito assexuado.
Mas há quanto tempo não ouves um sino a percorrer o nevoeiro de uma cidade silente. (O inverno fecha as casas e os seres dentro delas. As igrejas são sítios frios.) Os sinos não fazem questões, não falam sequer. Ecoam pelas almas da rua, emanações neoplatónicas. Deus, a ideia nos píncaros, a transcendência, e depois a queda no mundo, as pequenas realidades duplicadas que escarram no chão, as ruas desviadas onde só as putas esperam qualquer coisa.
Silêncio, que um dia as palavras serão adereços gastos pela usura e tudo será redimido pelos sinos. Ou talvez nada. Ou talvez o dia não chegue.

domingo, janeiro 14, 2007

cidades oblíquas

Ao contrário das cidades planas, as cidades oblíquas não são serenas e não têm bicicletas. Coimbra, por exemplo, é de uma obliquidade muito própria. Sob uma capa de serenidade, sobretudo aos fins-de-semana, escondem-se as intensidades mais profundas, tal como sob o cinzento existem zonas negras e cores estridentes. A distribuição irregular da luz (sempre a luz...) provoca desequilíbrios, zonas de sombra, acidentes. Se Coimbra é uma cidade melancólica é pela forma como a obliquidade se infiltra na pele das pessoas e provoca cisões: os doutores e as hierarquias; a alta e a baixa; o tempo que se desdobra constantemente em níveis e que faz com que o passado esteja sempre já presente; o futuro que se enrola em si próprio, mordiscando os calcanhares da memória. O desnível é constante e perturbante, sobretudo para quem já criou laços com a cidade.
Face a Lisboa, Coimbra tem, não diria a desvantagem, mas a potencialidade do ensimesmamento. As colinas de Lisboa não formam uma obliquidade tão marcada, e depois a luz penetra os corpos de uma forma mais ampla. Mesmo quando é irregular, fora das grandes avenidas e no coração dos bairros "populares", a luz alfacinha é mais dada à explosão do quotidiano (como quando o Tejo explode por detrás de uma esquina). Mas os bairros "populares" de Coimbra são marcados pelo desnível, pelas intensidades internas que sofregamente consomem uma luz que nunca explode, senão para dentro (as suaves águas do Mondego) .
Numa cidade oblíqua os passos são irregulares e o corpo ressente-se de uma forma peculiar: as subidas e descidas fazem com que os tendões, os músculos e as articulações sejam postos à prova, num constante jogo de acelerações e travagens. No último fôlego de um dia de caminhada, mesmo as pernas habituadas a andar descobrem-se, doridas, com zonas esquecidas.
Talvez não existam cidades oblíquas, mas sem dúvida nenhuma elas persistem no interior da luz, do tempo e do corpo de cada um que as constrói.

a imaginação o bolo o sentido a vida

"Pôs-se a comer um bocado e a repetir ansiosamente para consigo:
«Para que lado? Para que lado?» E punha a mão no alto da cabeça, para sentir para que lado é que estava a crescer.
Ficou muito surpreendida ao ver que continuava do mesmo tamanho. É bem certo que isto é o que geralmente acontece quando se come bolos, mas ela já estava tão habituada a não esperar outra coisa senão acontecimentos extraordinários que lhe parecia bastante aborrecido e estúpido se a vida continuasse a correr de uma maneira normal.
Lançou, pois, mãos à obra, e num instante acabou com o bolo."