levante

textos sem sentido e outros

quinta-feira, junho 28, 2007

a gramática

assim sem nome sem memória sem passado sem futuro sem destino sem oxigénio sem nada para dizer sem ideias sem sentimentos sem frio sem calor sem sorriso sem choro sem grito sem cores sem água sem terra sem mágoa sem ressentimento sem sentido
assim sem pontuação enquanto espero pela campaínha

sexta-feira, junho 22, 2007

histórias realmente curtas - 6

Há um homem que trabalha longe de casa e costuma fazer muitas viagens de carro. Numa sexta-feira, enquanto voltava a casa, extremamente cansado do dia de trabalho no departamento de contabilidade da empresa de construção civil, as pálpebras superiores insistiam em cair sobre as inferiores, o que dificultava bastante a visão e a vigília. Contudo, como o homem já estava farto de conduzir, pensou que não seria mau se descansasse um pouco. Então fechou os olhos. Quando acordou, estava a entrar na garagem de sua casa. Passado um mês recebeu por correio uma multa de excesso de velocidade. Reclamou junto da DGV, dizendo que enquanto dorme não conduz a mais de 80 Km/h. A funcionária respondeu que a ocorrência passara-se numa zona em que não era permitido circular a mais de 60 Km/h, acrescentando que os sinais servem para separar o sonho da realidade. E então o homem pagou a multa.

sábado, junho 16, 2007

histórias realmente curtas - 5

Há uma mulher que trabalha longe de casa e costuma fazer muitas viagens de carro. Numa sexta-feira, enquanto voltava a casa, extremamente cansada do dia de trabalho no departamento de contabilidade da empresa de construção civil, as pálpebras superiores insistiam em cair sobre as inferiores, o que dificultava bastante a visão e a vigília. Contudo, como a mulher já estava farta de conduzir, pensou que não seria mau se descansasse um pouco. Então fechou os olhos. Quando acordou, estava a entrar na garagem de sua casa. Passado um mês recebeu por correio uma multa de excesso de velocidade. Não reclamou.

domingo, junho 10, 2007

histórias realmente curtas - 4

Um dia, há muito tempo atrás, ainda as palavras não haviam encontrado todo o seu sentido, dois homens caminhavam por uma vereda. Chegaram a uma bifurcação. Não conseguiram chegar a um acordo quanto ao caminho a seguir. Um deles fechou os olhos e disse “a linguagem é uma fonte de mal-entendidos”. O outro não disse nada, pegou numa pedra e bateu com força na cabeça do seu acompanhante, derrubando-o. Seguiu pela direita e sentiu-se livre.

sábado, junho 09, 2007

histórias realmente curtas - 3

A criança e o adulto, sentados:
Adulto: quantos anos tens?
Criança: estes. (levantando três dedos) E tu?
Adulto: eu tenho mais, mais do que os dedos das mãos. Tenho muitos dedos.
Criança: Uhm…?
Adulto armado aos cucos: Se os meus dedos são maiores sou mais velho que tu. Olha. (levantando o dedo indicador)
Criança: Uhm… (compara o seu dedo com o do adulto e aceita)
Adulto: o que importa é o tamanho dos dedos.
Criança: (põe-se em pé na cadeira, levanta o braço direito e espeta o indicador em direcção ao tecto) Sou mais velho que tu!

segunda-feira, junho 04, 2007

reler, relembrar

"Também a arte dionisíaca nos quer convencer da eterna alegria que está ligada à existência; somente não devemos procurar esta alegria nas aparências, mas atrás das aparências. Devemos reconhecer que tudo quanto nasce deve estar pronto para um doloroso declínio, que somos forçados a mergulhar os nossos olhos no aspecto horrível da existência individual – e no entanto o terror não nos deve gelar: uma consolação metafísica arranca-nos momentaneamente à engrenagem das migrações efémeras. Somos verdadeiramente, por curtos instantes, a própria essência primordial, e sentimos o desejo e a alegria inesperada da existência; a luta, a tortura, o aniquilamento das aparências nos parecem de ora avante como necessárias, em frente da intemperante profusão de inumeráveis formas de vida que se chocam e se comprimem, na presença da fecundidade superabundante da Vontade universal. O aguilhão furioso destes tormentos vem ferir-nos no próprio momento em que nos sentimos, de algum modo, identificados com a imensurável alegria primordial da existência, onde pressentimos, no êxtase dionisíaco, a imutabilidade e a eternidade desta alegria. A despeito da piedade, gozamos a felicidade de viver, não quando indivíduos mas quando confundidos e absolvidos na alegria criadora da vida total, única."

Nietzsche, A Origem da Tragédia, p. 134

domingo, junho 03, 2007

intertextualidades

A SEGÓVIA

Muita segóvia batem estes almas do diabo
no escuro da cama
lépidas mãos sob a coberta os solitários

mas eu que os via e fui deles parte peço
piedade quanta haja para quem
deixou a mulher longe piedade para as fotos
desnudas os calendários sexy peço um pouco
de piedade isto chama-se Nambuangongo
não podendo ser de outro modo o que fazem no escuro
ocultam nas cartas como se quisessem deixar antes dito

sabes lá tu o amor
piedade para o desvio natural para a garganta
seca depois da emboscada

sul cuor della terra (Quasimodo)
ognuno sta solo sul cuor della terra
naquele terceto ao pôr-do-sol

os solitários da segóvia da mata


Poema de Fernando Assis Pacheco escrito em 1973, in Lote de Salvados (incluído na antologia A Musa Irregular)

histórias realmente curtas - 2

Em Junho, quando as ervas começam a secar, as pessoas do campo têm por costume cortá-las, de modo a libertar os caminhos e impedir a acumulação de bicharada. Uma senhora de Monchique encontrava-se então a usar a gadanha para cortar as ervas quando, de repente, olha para o lado e vê uma coisa comprida e peluda a agitar-se, esmorecendo progressivamente. Mas só quando ouviu os latidos de um cachorro percebeu que havia cortado o rabo da mais recente aquisição da casa. O pobre do bicho não conhecia ainda os costumes das pessoas do campo.

histórias realmente curtas - 1

Havia um homem que, nos anos 50 do século passado, ia fazer as ceifas de trigo ao Alentejo. Esse homem não convivia mal com as especificidades da natureza, mas um dia em que se encontrava mais aziago irritou-se bastante com as moscas que lhe assaltavam a pele suada. Já a ceifa ia longa quando, mais uma vez nesse dia, gesticulou freneticamente, procurando enxotá-las. Só que desta vez a foice não cortou o trigo nem as moscas nem o ar, mas a ponta do seu nariz.