levante

textos sem sentido e outros

sábado, setembro 30, 2006

o canto

Portugal é um rectângulo. Um dos seus quatro cantos fica lá para os lados do levante. Empurrado pelo vento que ontem se fez sentir a sul ou talvez pelo acaso do sistema educativo português, é nesse canto que passarei grande parte dos próximos meses.

sábado, setembro 23, 2006

?

O tempo e a maré não esperam por nenhum homem.

terça-feira, setembro 19, 2006

"na patagónia"

Perguntaram-me pelo Verão e pelas viagens que sempre lhe foram próprias, ao Verão e a mim.
Ao princípio respondi que "nada, não consegui passar da Serra de Monchique", mas depois reparei que mentia. Na verdade fui até à Patagónia, que fica ali entre Alvor e o Estreito de Magalhães. Na companhia de Bruce Chatwin, autor de um clássico da literatura de viagens, percorri uma das terras mais seguras em caso de um incidente nuclear em grande escala. E Chatwin sabe que as viagens são um conhecimento de si próprio pelo confronto com as dificuldades físicas e humanas - do presente, do passado e do futuro. Conheci personagens enigmáticas e perturbadas, bandidos famosos, marinheiros errantes, fascistas e comunistas, ouvi falar de unicórnios e outros animais raros, produtos mistos de ciência e imaginação. Como tudo naquelas terras remotas, onde as origens se perdem entre os mitos e a distância geográfica.
Lugar de exílios e expiações, como o de um tal Walter que trauteia árias alemãs e a quem se atribui a invenção e supervisão dos fornos crematórios ambulantes. Lugar de errância e de limites, tem tudo para ser um dos meus destinos de eleição. Só não gostei do vento constante que nos entra pelos ouvidos e chocalha tudo o que entre eles existe. Mas, enfim, não existem viagens perfeitas.

domingo, setembro 17, 2006

ainda a luz

Faz-se luz pelo processo
de eliminação de sombras
Ora as sombras existem
as sombras têm exaustiva vida própria
não dum e doutro lado da luz mas no próprio seio dela
intensamente amantes loucamente amadas
e espalham pelo chão braços de luz cinzenta
que se introduzem pelo bico nos olhos do homem

Por outro lado a sombra dita a luz
não ilumina realmente os objectos
os objectos vivem às escuras
numa perpétua aurora surrealista
com a qual não podemos contactar
senão como amantes
de olhos fechados
e lâmpadas nos dedos e na boca

Mário Cesariny, Pena Capital

sábado, setembro 16, 2006

luz embriagada

A manhã acorda embriagada de luz. Os olhos são cortinas trespassadas pela imensidão das horas que se acumulam nas retinas como imagens num ecrã de cinema. Quase todas falsas, as imagens, as retinas, as manhãs.
Algo se teceu pela escuridão da noite e tudo, mas mesmo tudo, foi engolido por um enorme buraco negro que suga tudo à sua volta. Por isso a luz que por vezes aparece na aurora dos dias é uma ilusão como todas as ilusões bem montadas: acorda-se e lava-se a cara, do espelho saem rostos conhecidos (as variações do mesmo), esboços de ironia e razão, um murmúrio a roçar palavra.
Há que cumprir o estabelecido. Visitar a memória, dar alento os vícios do corpo, exercitar a morte para que a vida se cumpra com sentido.
E translúcido, reluzente, um homem há-de brilhar por dentro de tudo isto.

segunda-feira, setembro 11, 2006

11

No topo da pilha dos CD's encontrava-se um rosto jovem, melancólico e insolente. Bob Dylan. Foi com a voz trepidante que percorre esse rosto que comecei o dia. Provavelmente ele estava no topo da pilha dos CD's por causa do excelente filme/documentário, realizado por Scorcese, que passou há dias no segundo canal da TV e me obrigou a revisitá-lo.
Mas hoje, como se à espera do momento certo, ele ainda lá estava. "The times they are a-changin'" entrou pela manhã e fez com que entre mim, o mundo e a música uma feliz geometria se desenhasse.

quinta-feira, setembro 07, 2006

coisas

Durante a viagem abro o livro, emprestado por tempo indeterminado, como tudo aquilo que emprestamos para que alguém fique com um pouco de nós. No início de um capítulo intitulado "a imperfeição da filosofia", a proprietária do livro escrevera a letras verdes e imponentes a seguinte inscrição: AMOR Isto é muito importante. Sem conhecer o conteúdo do capítulo, a minha imaginação dispara ao encontro das múltiplas significações dessas palavras. É óbvio que existe amor na filosofia e que ambos se alimentam da incompletude e do abismo que é o ser humano. Mas a minha imaginação não quer explicações, o jogo é livre e a liberdade é um bem a preservar.
Recordo apenas a jovialidade melancólica da proprietária, algumas horas antes, enquanto confessava, penso que em surdina e sem dúvida por entre elogios calorosos a Kant, que a sua vida sempre fora uma procura de coisas importantes.

quarta-feira, setembro 06, 2006

"i am my work"

Em 1982 Mapplethorpe convidou-a para uma sessão de fotografias no seu estúdio. Bourgeois não gosta de se deslocar, não gosta de aparecer desprevenida nem de se ver separada da sua obra, por isso levou uma escultura, Fillette (pequena menina). Não consigo apreender plenamente a expressão do seu rosto, mas entre a satisfação e a provocação é qualquer coisa de admirável.

segunda-feira, setembro 04, 2006

obras - epílogo

As casas falam dos seus habitantes.
As obras são formas dos habitantes repensarem as casas.
Tudo isto poderia ser uma metáfora da vida humana, mas não é uma metáfora, é a própria vida que se confunde com as paredes de cimento - e isto não é uma metáfora, é a matéria a trabalhar por dentro dos nossos gestos e das nossas palavras. Falar de casas e de obras é falar de si próprio, portanto, inevitavelmente, assumo agora que as obras são os movimentos do meu corpo e as experiências adquiridas sempre que uma parede é deitada abaixo e com ela a protecção e a segurança do quotidiano. De repente, a desordem e um pó muito fino que se infiltra nos poros e perturba a sanidade dos dias.
As obras terminam e com elas chega ao fim uma etapa. Outras etapas surgirão porque as casas, como as cidades, os estudos, os trabalhos, as mulheres, as estações do ano, são modos de ser em movimento. E o movimento faz-se de várias formas: ocultação, eterno retorno, ruptura, esquecimento, velocidade, distância, memória... Raramente as etapas terminam no seu tempo próprio; mesmo no desporto, onde o cronómetro impera, há por vezes etapas que transbordam a cronologia e entram para a história: os recordes. Ora as restantes etapas da vida, e sobretudo as das obras da vida, também deixam as suas marcas, os seus pontos altos. O que o movimento faz às etapas é pô-las constantemente em causa, testá-las, levá-las ao limite do seu sentido. A loucura é um movimento sem limites exteriores. O egoísmo é um movimento interior sem limites. Ambos, a loucura e o egoísmo, estão associados a uma certa perda da racionalidade e trabalham para uma estética do erro.
Não interessa se uma casa se desmorona ou se renova. Isto sim é uma metáfora que nos afasta do essencial. O essencial é que existe o movimento que está por detrás de todas as construções e destruições, e este movimento, que tanto pode ser o de relações de força, de paixões, de amor, de ódio, esse movimento, dizia, faz parte do aprender a habitar.
Por detrás do quotidiano do habitar existe, portanto, uma aprendizagem do movimento, uma compreensão das estruturas e da força que o potenciam. Até ao ponto em que o incompreensível da vida se impõe.
E assim termino as obras porque elas me deram tudo o que me podiam dar. Resta-me rehabitar.

domingo, setembro 03, 2006

teatro II - para uma estética da aviação humana

Só quem plana sobre o mundo tem acesso a uma visão clara e distinta das suas estruturas. No entanto, este permanecer à superfície não consegue dar conta da profundidade com que a vida insiste em fazer-se sentir. Ela está lá, mas mascarada de palavras que o actor lê, utiliza, decora, analisa, esquece. As grandes questões (enunciadas e não enunciadas) da vida, que cada um tem de conceber à sua própria maneira, mascaram-se de palavras e permanecem como aquilo que há em nós de mais humano. As palavras mascaram-se de silêncio, e é neste golpe inesperado, nesta suspensão da palavra que todo o teatro se joga. As palavras estão lá para dizer que fica sempre algo por dizer. É assim que o teatro e a vida são profundos e insondáveis. Mas o actor tem de planar sobre o mundo para que a sua vida não se confunda com o seu papel.

sexta-feira, setembro 01, 2006

teatro

O actor descobriu que andava pelo mundo como se este não passasse de uma paisagem. Percebeu então o drama da sua própria situação. Percebeu o distanciamento e a sensação de vertigem que sempre o assolavam quando tentava beijar os lábios afogueados das mulheres – em cima do palco ou sobrevoando o relevo dos dias, o actor perdia a noção da terra.