levante

textos sem sentido e outros

segunda-feira, setembro 04, 2006

obras - epílogo

As casas falam dos seus habitantes.
As obras são formas dos habitantes repensarem as casas.
Tudo isto poderia ser uma metáfora da vida humana, mas não é uma metáfora, é a própria vida que se confunde com as paredes de cimento - e isto não é uma metáfora, é a matéria a trabalhar por dentro dos nossos gestos e das nossas palavras. Falar de casas e de obras é falar de si próprio, portanto, inevitavelmente, assumo agora que as obras são os movimentos do meu corpo e as experiências adquiridas sempre que uma parede é deitada abaixo e com ela a protecção e a segurança do quotidiano. De repente, a desordem e um pó muito fino que se infiltra nos poros e perturba a sanidade dos dias.
As obras terminam e com elas chega ao fim uma etapa. Outras etapas surgirão porque as casas, como as cidades, os estudos, os trabalhos, as mulheres, as estações do ano, são modos de ser em movimento. E o movimento faz-se de várias formas: ocultação, eterno retorno, ruptura, esquecimento, velocidade, distância, memória... Raramente as etapas terminam no seu tempo próprio; mesmo no desporto, onde o cronómetro impera, há por vezes etapas que transbordam a cronologia e entram para a história: os recordes. Ora as restantes etapas da vida, e sobretudo as das obras da vida, também deixam as suas marcas, os seus pontos altos. O que o movimento faz às etapas é pô-las constantemente em causa, testá-las, levá-las ao limite do seu sentido. A loucura é um movimento sem limites exteriores. O egoísmo é um movimento interior sem limites. Ambos, a loucura e o egoísmo, estão associados a uma certa perda da racionalidade e trabalham para uma estética do erro.
Não interessa se uma casa se desmorona ou se renova. Isto sim é uma metáfora que nos afasta do essencial. O essencial é que existe o movimento que está por detrás de todas as construções e destruições, e este movimento, que tanto pode ser o de relações de força, de paixões, de amor, de ódio, esse movimento, dizia, faz parte do aprender a habitar.
Por detrás do quotidiano do habitar existe, portanto, uma aprendizagem do movimento, uma compreensão das estruturas e da força que o potenciam. Até ao ponto em que o incompreensível da vida se impõe.
E assim termino as obras porque elas me deram tudo o que me podiam dar. Resta-me rehabitar.