levante

textos sem sentido e outros

domingo, janeiro 14, 2007

cidades oblíquas

Ao contrário das cidades planas, as cidades oblíquas não são serenas e não têm bicicletas. Coimbra, por exemplo, é de uma obliquidade muito própria. Sob uma capa de serenidade, sobretudo aos fins-de-semana, escondem-se as intensidades mais profundas, tal como sob o cinzento existem zonas negras e cores estridentes. A distribuição irregular da luz (sempre a luz...) provoca desequilíbrios, zonas de sombra, acidentes. Se Coimbra é uma cidade melancólica é pela forma como a obliquidade se infiltra na pele das pessoas e provoca cisões: os doutores e as hierarquias; a alta e a baixa; o tempo que se desdobra constantemente em níveis e que faz com que o passado esteja sempre já presente; o futuro que se enrola em si próprio, mordiscando os calcanhares da memória. O desnível é constante e perturbante, sobretudo para quem já criou laços com a cidade.
Face a Lisboa, Coimbra tem, não diria a desvantagem, mas a potencialidade do ensimesmamento. As colinas de Lisboa não formam uma obliquidade tão marcada, e depois a luz penetra os corpos de uma forma mais ampla. Mesmo quando é irregular, fora das grandes avenidas e no coração dos bairros "populares", a luz alfacinha é mais dada à explosão do quotidiano (como quando o Tejo explode por detrás de uma esquina). Mas os bairros "populares" de Coimbra são marcados pelo desnível, pelas intensidades internas que sofregamente consomem uma luz que nunca explode, senão para dentro (as suaves águas do Mondego) .
Numa cidade oblíqua os passos são irregulares e o corpo ressente-se de uma forma peculiar: as subidas e descidas fazem com que os tendões, os músculos e as articulações sejam postos à prova, num constante jogo de acelerações e travagens. No último fôlego de um dia de caminhada, mesmo as pernas habituadas a andar descobrem-se, doridas, com zonas esquecidas.
Talvez não existam cidades oblíquas, mas sem dúvida nenhuma elas persistem no interior da luz, do tempo e do corpo de cada um que as constrói.

1 Comments:

  • At 7:19 da tarde, Blogger nrc said…

    Talvez partilhes do seu brilho pois conheces bem os sítios e a luz. Visitei coimbra há uma semana, daí a inspiração do post, e lisboa fica para as próximas semanas, a ver se com tempo para chegarmos às seis da manhã, que já faz falta...
    abraço

     

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