levante

textos sem sentido e outros

domingo, maio 27, 2007

voltar

I
Voltar exactamente pela mesma linha, percorrer exactamente os mesmos quilómetros, fazer as mesmas paragens. Maior simetria de percurso seria impossível. Mas ainda assim (paradoxo das viagens) voltar para um sítio que já não existe, para uma casa que a cada dia, a cada semana, se desloca. Voltar para uma cidade onde a estranheza (questão urbana, humana?) se infiltra nas veias do quotidiano. Voltar para onde? Para quê?
Em todas as viagens, mas sobretudo nas mais longas, o que me custa verdadeiramente é o regresso, talvez por saber que regresso a um mesmo que é já sempre outro, ainda que nada na ordem natural das coisas se tenha alterado. E sentir tudo isto com uma acuidade dérmica, como se de pequeníssimas agulhas se tratasse. E saber que as picadas são momentâneas, em favor de uma certa saúde.
II
Talvez isto, esta divagação melancólica, me tenha surgido porque o comboio passou pela zona de Bias, entre Tavira e Olhão, atravessando a ponte ferroviária que há alguns anos atrás (10, 15, 20…) eu cruzava, por baixo e num outro sentido, de chinelos e calções, baldes para conquilhas e lingueirão, em direcção à ria e ao mar, ali onde a costa é um extenso areal que não tem fim. Que nunca teve fim. Se a minha infância teve um local de férias, só pode ter sido esse.
III
Mas este voltar de que falo não tem nada de nostálgico. A infância é uma divisão encerrada. Continuo, ainda hoje, sem saber o que é isso das inocências e das felicidades e das liberdades das tenras idades.
IV
No fundo, o que me interessa é a imagem de alguém que viaja num comboio à sexta-feira, o dia propício aos regressos. Levanta os olhos do ípsilon (também nos jornais há mudanças, por vezes para uma cacofonia ao sabor dos tempos), reconhece a paisagem, os caminhos por entre lodo e viveiros, as casas dos pescadores, a barreira dunal lá ao fundo. Mas o comboio é o tempo e o tempo, mesmo na linha do Algarve, é veloz. A imagem dissolve-se. Alguém volta a pousar os olhos no suplemento para-literário. Ou, talvez, sim!, lesse O Imortal de Borges, esse que foi todos e não foi ninguém (“Palavras, palavras deslocadas e mutiladas, palavras de outros, foi a pobre esmola que lhe deixaram as horas e os séculos”). Ou talvez nunca tivesse levantado os olhos. Ou talvez nunca ninguém tivesse passado férias em Bias. Que sítio é esse? Existe? Talvez alguém visse esse nome escrito a letras frugais num apeadeiro que não merece paragem. Talvez imaginasse um local adequado a férias de infância. Talvez houvesse camaleões e mergulhos no tanque das regas, o sol refulgindo nas peles imberbes, descobertas pelo levante. Talvez houvesse tudo isto ou nada disto.
V
Voltar é uma construção incessante. Voltar e sentir que a vida é um manto de Penélope que jamais se tece com linhas simétricas e seguras, mas que ainda assim não se pode deixar de esperar (a ilusão, a esperança) a seta de Ulisses. Essa é a única agulha que nunca nos sairá da pele.