levante

textos sem sentido e outros

domingo, janeiro 04, 2004

Diário ficcionado de um algarvio longe do levante
19/12

Check In.
“À janela, pode ser.”
Não tenho medo das alturas e gosto de ver as luzes afastarem-se, gosto desses pontinhos sobre tela negra que desenham formas imprevistas e dizem uma imaginária presença humana. Quando o sol nascer posso também ver a paisagem imóvel dos campos e das cidades, os lençóis de algodão a que as pessoas menos informadas dão o nome de nuvens, a paz lenta e extensa que percorre os céus, o infinito tão perto dos olhos e ainda assim tão envergonhado.
Um erro informático. Nada de especial, apenas o suficiente para me lembrar de que viajar é também perder um pouco o controlo das coisas, sujeitarmo-nos ao imprevisto, ir por aí se possível. Não tenho (por vezes) medo de me perder.
São 5 da madrugada no aeroporto de Faro. Os olhos, com pouco mais de uma hora de sono, têm dificuldade em aguentar a luz que se derrama sobre os passageiros em espera.
A viagem é saltitante – Faro, Lisboa, Barcelona, Helsínquia – e agrada-me que assim seja.
Gosto de Barcelona vista do anfiteatro que o avião é obrigado a desenhar para aterrar no aeroporto. Tenho de voltar com mais tempo.
Na última ligação, já num avião da Finnair, sinto a estranha familiaridade que a língua finlandesa é capaz de proporcionar a quem com ela já contactou. Contactar é sem dúvida o verbo mais indicado para definir uma primeira relação com o finlandês, língua completamente ininteligível para o comum dos mortais. A estranha sensação de familiaridade vem sobretudo da musicalidade que o finlandês ganha quando se perde a dureza do primeiro contacto e o ouvido se habitua ao som do desconhecido. Não sei porquê mas parece-me uma língua com ritmo, quebras e por vezes arrastada de forma infantil. Como todas as línguas que não nos pertencem?
Ponho à prova a minha perícia e exercito um primeiro “kiitos” (obrigado) com a hospedeira de bordo. Tenho de melhorar a articulação dos i´s com o t...
O avião começa a descer, as luzes aproximam-se, a tela do mundo lá fora ganha contornos e torna-se um gigantesco relevo. É noite em Helsínquia.
Ulos"(saída)
Nada a declarar na alfândega, a boca seca, as palmas das mãos húmidas.
Há um funil de pessoas à espera de pessoas como eu. Há alguém à minha espera – não tem na mão uma placa com o meu nome.
“Sabes que o tempo, além de criar rugas dissolve os traços do rosto? Marca e apaga, desenha e faz esquecer.”
Em Helsínquia não há neve, apenas algum gelo empilhado nas ruas. Há a estranheza da distância, de pessoas distantes que se encontram sem se conseguir encontrar. Há lugares ausentes. Há saudades por matar.