levante

textos sem sentido e outros

terça-feira, janeiro 06, 2004

Diário ficcionado de um algarvio longe do levante
21/12


O dia começa cedo. A luz ergue-se molengona e inibida pelo solstício de Dezembro.
Se os ventos não permitirem a travessia do Báltico no rápido ferry da Silja Line, teremos de ir num outro mais lento e de horário imprevisível.
O dia começa branco. Já se sabia. Ela já sabia e talvez por isso nenhuma surpresa, nenhum deslumbramento ao espreitar pela janela do quarto. “Quando era criança ficava sempre entusiasmada...” Pois eu ainda não deixei de ser criança, e agora, de certa forma, ainda o quero ser mais. Nunca tinha verdadeiramente visto nevar.
Os primeiros passos na neve são sempre estranhos, depois, como todas as pessoas parecem andar normalmente, também o tento fazer. Preciso de um cachecol.
No ferry (o mais rápido) há muitos russos e estónios. Sei-o porque mo disseram e porque na porta de embarque havia uma entrada para os cidadãos da EU e uma entrada para os outros. Com tudo isto lembro-me de que estou no limite da Europa, ou pelo menos de “uma certa Europa” que nos habituámos a aceitar como única, como a verdadeira, como a que escolheu o rumo certo.
O vento é de bombordo, do mesmo lado que escolhemos para nos sentar. O vento fustiga as janelas e empurra as ondas e embala o barco que é de repente um enorme berço onde só apetece dormir.
“Doem-me os joelhos", ouço. "Sabes... os joelhos doem-nos quando temos muitas mudanças na vida”. Muda de posição, apeteceu-me dizer. Não disse nada.
A Estónia pertenceu ao bloco soviético, sei-o pelas fardas reminiscentes dos funcionários fronteiriços.
Neva intensamente em Talin, e às apalpadelas tentamos encontrar “Sadama”, o local do hotel (a piada de inspiração iraquiana é inevitável). Vagueamos um pouco pela cidade. A ausência de placas de sinalização torna claro que já saímos da Finlândia.
Tínhamos combinado um encontro com a Tina, uma amiga que estudou no ano passado em Coimbra. Tentamos encontrar a praça que fica na cidade velha, o bairro medieval que foi restaurado há pouco tempo e que apetece percorrer a pé e sem rumo definido. Infelizmente, para já, temos um objectivo, e reparo que os grandes problemas da humanidade, tal como os de duas pessoas perdidas, surgem mais dos meios a utilizar do que propriamente dos fins a atingir.
A Tina diz que é a primeira pessoa a ensinar português na Estónia. Paradigmaticamente, ao contrário das línguas e culturas espanholas e italianas, já bastante conhecidas e apreciadas por estas bandas, este caso revela as nossas dificuldades de projecção exterior.
A Tina diz que este ano não há nenhum estudante português a fazer o programa Erasmus na Estónia, e talvez por isso ou pela falta de dicionários e gramáticas, inunda-me de perguntas acerca de palavras, expressões e entoações. Respondo com prazer, sentindo que estou a cumprir um dos meus poucos deveres patrióticos.
No “Noku” (pilinha), com uma “Saku” (não sei o que significa mas é uma boa cerveja) a escorregar por entre a conversa, descobrimos que afinal há um estudante português naquele país. Vem sorrateiramente apresentar-se à nossa mesa, já o bar desligava o som e as luzes, e diz que é do Porto, que vive e estuda na mesma cidade da Tina, que nos ouviu falar português e então..., que o politécnico que frequenta tem boas condições. E queixa-se do escuro, da cinzenta cidade que agora se esconde sob a neve, e arrasta a voz, metendo palavras inglesas pelo meio, e despede-se já ao fundo da rua e
o vento é frio e a neve vagueia pelo
ar
e os olhos protegem-se da
neve que vagueia
e a cidade velha
iluminada pelo calor da cerveja
pelas luzes pálidas da
noite
é um sítio que dá sentido à palavra
viajar
(voltar?)