levante

textos sem sentido e outros

terça-feira, janeiro 13, 2004

Diário ficcionado de um algarvio longe do levante
24/12


Cansado do conforto da casa decido sair à rua. Quero ver de novo o mar. Sozinho reencontro lugares que ficaram presos na memória do último Verão. As pequenas ilhas que marcam o horizonte próximo de Helsínquia já não estão cheias de banhistas a aproveitar o sol, são agora fustigadas por um vento cortante. Já não há barcos no pequeno porto de recreio, mas antes blocos de gelo que flutuam em movimentos compassados. Do outro lado da cintura de ilhas, onde verdadeiramente começa o Báltico, imagino serem impossíveis os blocos, porque o mar é violento e a espuma branca das ondas bate nas rochas e dissolve-se no vento. Do lado de cá tudo é mais plácido, e apenas os patos permanecem dentro de pequenas poças de água, já não airosos como em Julho, mas como que humilhados pelo gelo, à espera de não sei que deus ou mundo revelado.
Tiro algumas fotografias, embora os poucos graus negativos não ajudem muito o processo. As mãos protestam assim que saem das luvas, e as pessoas olham-me com espanto, e eu olho com espanto para as pessoas que correm ao lado de um mar gelado, que alimentam um bando de aves indistintas (gaivotas, corvos, pardais, “arakas”?), unidas às outras aves e aos homens pela aspereza do Inverno.
Vou caminhando, lembrando-me da filosofia e da fotografia, da relação entre ambas, dos mundos destruídos e refeitos, das realidades esquecidas e apreendidas, do real, das ilusões, dos ilusionistas. Lembrando-me do espanto, que é o sangue que as alimenta, lembrando-me das peles duras e secas, sem sangue, imunes às mais afiadas lâminas. E do esforço de pensar e tornar tudo isto compreensível, enfim, de tornar útil um passo nestas ruas da diferença, de pessoas diferentes, de “um mundo” sempre diferente.
Faço o percurso costeiro até ao porto comercial onde os enormes ferrys descansam, sigo em direcção à catedral branca. A boneca da loja de souvenirs russos (mais russos que finlandeses...) continua sentada na esquina a olhar os turistas que olham a catedral que eu olho pelo olho mecânico e espelhado da máquina de fazer realidades.
“Can you take me a picture”, peço. Sozinho, preciso de um pouco de atenção.
As ruas do centro estão quase vazias, as lojas fechadas. No mesmo sítio do dia anterior o homem do trompete toca qualquer coisa. Tem o instrumento e as mãos envolvidos num saco de plástico – está frio e o vento entorpece os dedos. Sou incapaz de tirar uma fotografia. Guardo a melancolia no cinzento do natal e julgo, sei, que nenhuma película exposta pode guardar sem esquecer.
Véspera de Natal, Julie Andrews, “Música no Coração”. Ahhhh! Também aqui!?
Pelo menos não se come bacalhau com todos.