levante

textos sem sentido e outros

terça-feira, janeiro 13, 2004

Diário ficcionado de um algarvio longe do levante
26/12


Chove.
A neve derrete.
Falo no escuro de uma casa e rasgo o silêncio com esgares de loucura. Algo – dentro ou fora de mim – morre lentamente, e tenho medo de que esta angústia não seja apenas a natalícia, mas também uma outra mais encarniçada, sufocante, mortal.
Perder o humor, a vontade de rir, a confiança nas palavras. Perder aquilo que sei difícil de construir: os muros erguidos a braços de ilusão. Ganhar um fatalismo estúpido, uma estúpida dor empacotada em rasgos negros sobre um papel branco de alvura.
E sei que não sou assim e nada disto é verdade, nunca estive nos lugares que descrevo, nunca vi a neve cair sobre os meus ombros, nunca estive nem próximo da Escandinávia, não conheço pessoas de lá. Estou num sítio onde o sol brilha, numa esplanada ao pé do mar do Algarve. Os turistas de Inverno dizem “que sorte este pessoal aqui de baixo, têm sol todo o ano!”, e lá vão eles visitar mais uma praia, mais uma estrada rodeada de betão. “Ai se nós em Lisboa tivéssemos este tempo... Seríamos tão mais felizes, mais alegres, com menos problemas existenciais causados pela chuva e o cinzento das nuvens numa tarde de Domingo, blá, blá, blá”. Sorrio, e entretanto chega um casal de holandeses em manga curta e calções. Ambos bebem cerveja, contemplam a serenidade do mar, esboçam algumas palavras que felizmente não compreendo, e penso, no fundo, no fundo, que o grande problema de Portugal é a incompreensão meteorológica.
Regresso ao país dos lagos (são quase 200 mil, para ser mais preciso).
O vento vem do mar, é limpo e frio. Pergunto-me se haverá aqui algo de parecido com o levante. E recordo-me do final de Julho e dos corpos ensopados de humidade na vertigem do Báltico. As peles quentes, os poros sufocados. Era bom. Descubro que há levante sempre que alguém puder renascer do sangue e da pele.
As pessoas passeiam à beira-mar e chocam o seu olhar com o meu. Por vezes insisto e obrigo alguém a baixar a cabeça. Conclusão: as íris escuras fortalecem o olhar.
Tiro algumas fotografias a um dos meus locais preferidos de Helsínquia, onde a simetria do bairro rico se cruza com as chaminés das fábricas e a impetuosidade de uma zona industrial. A beleza deste local, como de tantos outros nesta cidade, é a aparente continuidade entre as zonas habitacionais e industriais. Continuidade descontínua – e talvez seja isto, a capacidade de fazer isto, que torna a arquitectura de Alvar Aalto (e afins...) tão especial, tão natural na sua harmonia rugosa.
À noite usufruo de uma prenda de Natal: “O Quebra-Nozes”, ballet clássico na Ópera Nacional. Gosto da música de Tchaikovsky. O espectáculo termina e nós saímos sensivelmente ao décimo quarto minuto de palmas. Compreende-se, a companhia é grande e há muita gente em palco para ser aplaudida. Só não há é paciência para tanto... Levantamos os casacos mas entretanto já a turba empinocada de crianças e adultos invade o hall do magnífico edifício. Turba empinocada naturalmente, pois, que talvez esta gente do norte não tenha tanta ânsia no “parecer social” quanto a tem o português. Mas ainda assim, e talvez isto seja provocado pela minha rudeza algarvia, não percebo, não quero perceber porque é que a arte e os espectáculos artísticos têm de ser mostra de vestuários, poses e posições sociais.
O regresso a casa é feito a pé, por um caminho longo e demorado. Mas é boa ideia, pois as palavras abrem-se e há um halo brumoso que rodeia as nossas bocas e parece contagiar as nossas frases. E pela primeira vez, apesar da noite profunda e dos –2º C, apesar do gelo escorregadio e do silêncio no coração da cidade, apesar dos eléctricos que arrastam as pessoas pelo silêncio do coração da cidade, apesar dos passos temerários das pessoas que não esperam pelos eléctricos que rasgam por dentro as palavras enleadas no coração, apesar das mãos cobertas de luvas, da pele escondida, dos corações escondidos e rasgados, das cidades eléctricas, das palavras caladas, do silêncio gelado, das bocas sedentas e da bruma de calor nos lábios gretados, apesar de tudo isto, pela primeira vez, os nossos olhos abrem-se e iluminam todo o universo.