levante

textos sem sentido e outros

quinta-feira, janeiro 15, 2004

Diário ficcionado de um algarvio longe do levante
27/12


No prédio em frente há lâmpadas acesas e pessoas-sombras a mastigar o conforto (sempre o conforto destas casas sem estores mas ainda assim fechadas, murmurantes, distantes
Aproveito o conforto e só pela noite, quando a obrigação de entregar os vídeos alugados é bastante forte, as ruas de Helsínquia se abrem aos meus passos.
Ah, é verdade, o silêncio finlandês, esse traço de orientalidade! Não o encontro, ainda não o encontrei. Talvez porque estou na capital e praticamente só falo com pessoas jovens. Silenciosos degenerados, alguns... outros lá vão mantendo a reserva, esse respeito sorridente, humilde, simpático. Para cumprir a minha missão de espionagem talvez precisasse de ir até ao interior do país, à região dos lagos. Aí, além de ser possível encontrar os “exemplares mais puros desta raça”, talvez conseguisse investigar o porquê das casas dos lagos, das idílicas férias de Verão passadas nessas casas, num recolhimento purificador, quase tão purificador como a sauna que nenhuma casa pode deixar de ter.
No Verão passei algumas semanas nessa zona, circulando por entre os lagos, as florestas, os mosquitos, os alces, as saunas. No Verão aprendi que nenhum lago é igual a outro, quanto muito parecido, mas sempre com uma cor, um tom diferente. No Verão – excepcionalmente quente – tomei banhos de placidez ao pôr-do-sol e de lua cheia sob um manto de mistérios. Por vezes parecia que as águas dos lagos não tinham fundo... e o corpo tornava-se pesado e queria fugir de mim, para o fundo, queria ficar ali naquela imensidão plana e distante de todo o mundo. Afundar-se na paisagem de florestas e água, florestas e água, florestas e água. Imagino agora uma paisagem de gelo e neve, gelo e neve, gelo e neve. E o corpo a querer afundar-se na água doce, pesada, que o chama. E o corpo retraído porque só gelo impenetrável ou água mortal.
E há o Parque Natural de Koli (com os picos a 300 e poucos metros acima do nível do mar), e as ilhas dos lagos desenhadas pela mão do degelo, essa terra mítica de contemplação onde os artistas e os menos artistas vão buscar inspiração. Terra vasta, silenciosa. Ah! O silêncio finlandês. Desisto do projecto, não quero pensar mais nisso.
Regresso a casa, ao conforto da casa.