levante

textos sem sentido e outros

quinta-feira, janeiro 22, 2004

Um dia

A manhã amanheceu limpa.
O mar-de-fora, que por vezes se parece com a ondulação de Oeste (que corre de esguelha a costa sul) mas que na sua pureza só deve ser aplicada à ondulação de Noroeste (que contorna o cabo de S. Vicente e varre, vai varrendo as praias douradas entre Sagres e, consoante a força, um ponto de extinção algures na costa algarvia-andaluz) chamou-me.
Em Ferragudo havia ondas que revoltavam a areia. Já não eram de mar-de-fora como ontem, talvez de oeste. Portanto, menos perfeitas. É um local bonito, que faz as delícias de surfistas e bodyboarders. Dentro de água, por detrás do molhe que divide rio e mar, vêem-se os prédios da Praia da Rocha. Por vezes parecem nascer das pedras do molhe, por vezes são engolidos, como eu, pelas cristas das ondas (lip é o termo "anglo-americano-técnico" do surf. Infinitamente menos poético do que crista).
Devia estudar mas não consigo, devia pensar mas não consigo, devia tomar decisões que não consigo tomar. Obrigo-me a ir à Biblioteca de Portimão, na esperança de que o ambiente faça o estado de espírito, mas feliz ou infelizmente - não sei - todas as mesas estão ocupadas. Ainda abro o Tractatus... de Wittgenstein, sento-me numa confortável poltrona, mas "a linguagem como representação do mundo empiricamente verificável" não me fascina - agora. Saio desalvorado em direcção ao mar.
No Fortaleza de Sta. Catarina, erguida no séc. XVIII (?) "para protecção de Silves e de Vila Nova de Portimão", havia uma rapariga que, debruçada de uma ameia, mexia no telemóvel. Mandava um SMS ao príncipe que se esqueceu de a vir buscar.
O rio Arade encolheu-se depois da construção da marina. Que coisa mais feia! No areal da Praia da Rocha
pegadas de pessoas, poucos passos presentes e verdadeiros, rodados de tractores.
Há dias em que, lentamente, me vou chateando com o mundo. Ao almoço tinha pensado em escrever sobre o bom artigo de Miguel Vale de Almeida no Público (sobre umas questões essenciais do aborto. Finalmente alguém diz que a Vida não é por essência uma decisão nem uma definição da ciência!). Mas como me fui chatendo lentamente com o mundo... Pensei em acabar com este blog, matá-lo para me deixar de vez destas pieguices existenciais.
Entretanto regresso a casa. O meu cão esteve quase a morrer mas hoje está melhor. Sento-me ao computador e começo a descrever o meu dia, começo a invadir a minha privacidade, coisa que julgava nunca vir a fazer. Porquê? Por que razão há momentos na vida em que não conseguimos falar senão de nós, com peso, gravidade, como se no fundo dos dias não houvesse senão um pesada carga de palavras que vamos aprendendo a utilizar. Para descobrir que nunca acertamos. E por vezes mais vale o silêncio.
A tarde entardece limpa.