levante

textos sem sentido e outros

segunda-feira, janeiro 26, 2004

Justificação das amendoeiras
(para ti)

Embora ninguém me tenha perguntado porque existem tantas amendoeiras no Algarve, eu vou responder (versão resumida e alterada da lenda):
_ Era uma vez um jovem príncipe, mouro, que vivia nos arredores de Silves e gostava de passear pelos campos. Um dia seu pai recebeu uma visita de uma caravana real, vinda algures dos países do norte, onde de acordo com relatos fidedignos fazia muito frio e as pessoas tinham o rosto esquivo e pálido.
Dessa caravana, além do rei do norte, saiu também uma bela princesa. O príncipe mouro não se encontrava perto do castelo quando tão inesperada visita chegou, mas atraído pelos som da trombeta que anunciava visitas importantes e dignas de recepção real, começou a correr na sua direcção.
Quando chegou, já seu pai tentava a difícil comunicação com aquela gente de tão estranha língua. Felizmente os muçulamanos eram povo de cultura, e havia sempre alguém versado na arte do diálogo, tal como havia sempre uma enorme curiosidade nos costumes e ensinamentos estrangeiros.
O príncipe foi saudado de forma amável pelos visitantes, e seus olhos de imediato se perderam no verde azulado dos olhos da princesa. Estava-se no fim da Primavera, altura em que a natureza embala os seres humanos num polén afrodisíaco e arrebatador.
Na primeira semana que a visita real durou, e graças à cumplicidade de uma jovem aia, foi possível ao príncipe e à princesa encontrarem-se sozinhos por alguns momentos. Debaixo de um sol ameno banharam-se no Arade e nas cristalinas águas das Fontes, sem inocência as suas peles tocaram-se e os membros do seu corpo revoltaram-se numa cobiça de prazer.
Ficaram noivos e casaram algumas semanas depois, e o rei do norte, não sem lágrimas, regressou à inóspita região de onde havia saído há meses para conhecer o resto do mundo. Mas agradara-lhe a amabilidade do povo muçulmano, e não era hábito cultural do seu próprio povo contradizer os desejos íntimos dos mais jovens.
Nos primeiros tempos correu tudo bem entre os apaixonados, mas passados alguns meses e chegado o Inverno, a princesa começou a sentir profundas saudades da sua família, da paisagem do seu país, da neve que por aquela altura cobriria certamente os campos onde crescera. Então o príncipe, sempre resoluto e imaginativo, não suportando mais a angústia da sua amada, mandou plantar amendoeiras por toda a região, e fê-lo com particular cuidado nos campos que se estendiam ao redor do castelo. Passados dois anos já a plantação começava a dar resultados. Chegado o fim do Inverno as amendoeiras começavam a florir, os campos enchiam-se de branco, como se cobertos de neve. Os ventos mais fortes arrancavam as pétalas das árvores e faziam-nas circular pelo ar, quais flocos gelados. E até meados da Primavera os olhos claros da princesa brilhavam perante tamanho esplendor da natureza, a pele fina do seu rosto ganhava o aroma das flores, o seu sorriso enchia o castelo e a alma do príncipe.
Não sei se viveram felizes para sempre, mas às vezes, não sei porque razão, no meio de tanta dúvida, de tanta tristeza, de tanto conhecimento, de tanto cepticismo e ironia, de tanta amargura, faz-me (faz-nos?) falta um pouco de inocência. Acreditar que as flores que agora vejo pelo vidro da janela são a ilusão de um mundo de felicidade. O difícil talvez seja admiti-lo.