levante

textos sem sentido e outros

terça-feira, agosto 29, 2006

obras V

A habituação aos novos espaços faz-se de forma lenta e progressiva. A visão percorre a geometria da divisões, retirando delas o primeiro impacto (este pode parecer insignificante mas representa no entanto algo de profundo e de enigático: de que forma uma imagem primordial, uma espécie de registo fotográfico momentâneo, pode introduzir-se nos nossos comportamentos e na nossa memória? Penso que todos nós poderíamos encontrar nos nossos arquivos pessoais uma dúzia destas imagens.).
A seguir ao primeiro impacto há como que um apalpar dos locais, experimenta-se o corpo nas diversas posições, averigua-se o peso da luz, escutam-se os ruídos, estuda-se a disposição dos objectos. É a fase do deslumbramento, a fase em que o novo reina sobre os sacrifícios do passado e o suor das noites mal dormidas.
Esta habituação tem algo de renovador, embora surja sempre por contraposição às imagens dos espaços passados. Pelo esquecimento ou pela comparação, as antigas divisões da casa desaparecem ou permanecem. É bom que desapareçam, caso contrário, se aliadas às imagens primordiais, as novas divisões da casa tornar-se-ão fantasmagóricas e imprimirão no quotidiano os gestos e as palavras que conduzem ao desvanecimento da alegria e que contagiam os outros como se de uma doença se tratasse.

sábado, agosto 26, 2006

distopia

2025.
Num dia de Verão os corpos dão à costa. Os nadadores-salvadores comunicam às autoridades marítimas, que entretanto têm barcos equipados com grandes redes que recuperam os corpos ainda flutuantes. São sobretudo africanos. Os nadadores-salvadores mais velhos dizem que de ano para ano a coisa está pior: só na praia de Alvor, desde o início do ano, já foram encontrados 1876 cadáveres. Imaginemos quantos não conseguiram passar e entrar na Europa.
Os turistas têm dificuldade em suportar as balsas clandestinas, as operações de resgate, o cheiro dos cadáveres, as imagens do desespero. Os autóctones exigem que as autoridades controlem a costa mas estas não dão conta do recado. As autoridades estão também voltadas para dentro, onde as bolsas de violência se começam a formar à imagem do que acontece noutros países europeus. Nalguns destes países são aos milhares os migrantes clandestinos que entram diariamente. São perseguidos, violentados, expulsos. Refugiam-se perto dos que vivem na mesma situação, perto também dos renegados urbanos, com os quais se revoltam. O terrorismo ganha novas formas. O poder concentra-se à direita - o medo e o desejo de segurança favorecem a direita.
Há coisas que deixam de fazer sentido. Um certo incómodo cultural percorre as consciências mais esclarecidas - as que percebem que o medo é a decadência da humanidade. De uma forma nunca antes experienciada nas democracias ocidentais, há questões que ganham contornos trágicos: O que é uma fronteira? O que é uma pátria? Por que é que o outro é outro? O que é um estrangeiro? Quantos seres humanos estão dispostos a abdicar do seu conforto quotidiano e civilizacional para salvar a vida de outros seres humanos?

quarta-feira, agosto 23, 2006

turista acidental

Gosto do Verão. Gosto desta cidade, sobretudo do cheiro das noites quentes e da bonomia que se delas se desprende como uma brisa proveniente do mar. Gosto também do cheiro a figos quando saio de dentro de um carro. Apazigua-me o espírito, reconcilia-me com os elementos, numa espécie de harmonia cósmica, numa renovação dos poros que suam porque não podem deixar de o fazer. Mas gosto também do Inverno, das praias desertas e das ondas que vêm do outro lado do Atlântico. O desabar do silêncio da madrugada sobre as arribas que mesclam numa paleta impressionista os tons do vermelho e do amarelo.
Talvez por isso, após o passeio de hoje, que provavelmente não fazia há anos, percorrendo as ruas da Praia da Rocha como um típico turista num banho de multidão, tenha sentido que me esventravam por dentro.

sábado, agosto 19, 2006

balanço da actividade

Escrever é procurar a palavra simples e certeira.

obras IV

Uma espécie de fenomenologia:
As divisões da casa correspondem a necessidades do nosso corpo: comer, dormir, defecar, lavar, descansar, comunicar, estar...
Quando o corpo se farta da rotina das divisões, tende a subvertê-las: o descanso deixa de ser apágio do quarto, a comida circula pelos espaços ao sabor das actividades, os impulsos sexuais encontram satisfação na excentricidade. Tudo para que o corpo se renove.
A decoração introduz o gosto e a beleza, valores que parecem ter pouco a ver com o corpo (parecem, mas não...).
As obras esventram a casa, o corpo ressente-se porque a casa é o corpo e os hábitos do corpo. Criam-se novos hábitos.
As janelas e as portas renovam o ar. Quando não há janelas nem portas, o ar entra e a intimidade intimida-se com a exposição aos caprichos do tempo. O corpo ressente-se das correntes de ar. As portas batem e o corpo acorda de sobressalto.
O berbequim que agora fura a parede funde-se com a música, os gestos da escrita entorpecem-se.
E de repente, com o tempo, a casa já não corresponde a necessidades do nosso corpo. Casa e corpo reinventam-se constantemente, há gestos que se fundem com a matéria (um móvel que obriga a circular pela sala: a dança dos objectos).
De repente a casa é o sítio em que o corpo habita, mas esquecido. A imaginação e a subservação unem-se aos hábitos. Habitar e hábito têm a mesma raíz etimológica. O hábito pressupõe a repetição, mas nunca há a repetição do mesmo, nunca há identidade Por dentro da repetição existe uma diferença irredutível (Nietzsche, Deleuze).
O corpo não tem necessidades fisiológicas puras, estas são também, e sempre, hábitos. O corpo tem um elemento de diferença que o corrói por dentro e inquieta a habitação.
Nunca ninguém habitará de forma tranquila porque é-se sempre corpo. Nunca ninguém, numa casa ou na vida.

sábado, agosto 12, 2006

obras III

Lentamente, as coisas voltam aos lugares, os panos deixam de cobrir os móveis, o pó é recolhido como se recolhem os pedaços de memória nos dias em que devemos recolhê-los para prestar contas à vida. Em situações normais, uma parte do pó que se acumula nos móveis provém do nosso corpo e da pele que se renova, mas neste caso é quase todo de pedra e cimento, pó muito fino que se infiltra e persiste.
As limpezas são também ocasião de voltar a perceber como os objectos se arrumam. Passado um mês destapamo-los e eis que se desvelam como prisioneiros da escuridão. Então causam-nos espanto e interpelam-nos, porque o quotidiano os havia tornado banais. Por exemplo, as estantes dos livros, que se alastram perigosamente pelas paredes do quarto: há muitos anos que a poesia se habituou à estante mais baixa, bem rente ao chão (foi assim em todas as casas em que habitou, ela, a poesia). Sempre me justificou tal facto pela necessidade de estar o mais próximo possivel da terra. Sempre interpretei tal necessidade como uma questão física e elementar, não só pela ligação às forças da terra, mas também pelo esforço que implica o baixarmo-nos. A poesia implica esforço, humildade, reverência, um certo recolhimento.
Da disposição dos livros de poesia não há muito a dizer, cabem numa estante e estão arrumados por autor, se bem que de forma aleatória. Mas as extremidades são curiosas. De um lado a Bíblia, que antes de ser uma sagrada escritura é dos mais belos livros de poesia, daqueles a que volto regularmente e que nunca encontrou outro lugar senão ali em baixo, bem rente ao chão. Do outro lado Paul Celan, no canto mais escondido de todas as estantes, como se guardasse um segredo perigoso. Celan é perturbante e não pode ser exposto nem lido de forma leviana, não pode estar à mão de qualquer impulso numa qualquer noite em que alguém se lembre de ler poesia. Celan, mais do que qualquer outro, exige esforço e consciência dos limites, porque contra o desespero, não o simples sofrimento mas o desespero que se acumula na surdina dos anos, como ele tão bem mostrou, só existe uma solução: o suicídio. E é por isso que, apesar de toda a beleza silente da sua poesia, Celan está no canto mais escondido da estante.

quarta-feira, agosto 09, 2006

geometrias dissonantes

No fundo, nu fundo, de pele exposta, sem artifícios, a verdade é que o verão é uma grande crosta que se forma ao redor do nosso corpo e quando damos por ele já não sabemos se os poros respiram ou se o desejo nos consome por dentro.
Mas há também todos os incómodos da sanidade mental: o trabalho, o descanso, a rotina, as horas que fogem e despertam a consciência.

domingo, agosto 06, 2006

obras II

Numa aula vi-me obrigado a explicar o que são fundamentos. Socorri-me da construção civil e das fundações que suportam as casas. Ora fundamentos e fundações são essenciais na construção, seja de casas ou de pensamentos ou de sentidos. Mas ambos têm tendência para se esconder, desempenhando o seu papel numa surdina que lhes dá uma consistência muito especial. Se fossem expostos, estariam mais vulneráveis e mais facilmente seriam derrubados. Isto é fundamental para perceber que a maioria das nossas justificações racionais assenta numa obscuridade de que nem sempre temos consciência. Nunca expomos o verdadeiro encadeamento dos nossos pensamentos, nunca lhes descobrimos a base, provavelmente nunca estaremos seguros das nossas próprias justificações, pelo menos não tão seguros como o dizer que "a água ferve pois atingiu os 100º".
A racionalidade lógica, que obviamente segue uma matriz de pensamento da evidência e da clareza, tende a expor os seus fundamentos, a que dá nome de axiomas. A racionalidade lógica é fraca porque se expõe na sua nudez, sem com isso conseguir explicar o que é o homem. Outros tipos de racionalidade, mais próximos da vida e do seu devir, não podem senão criar terrenos pantanosos onde os fundamentos se afundam. E desde o fundo desses fundamentos até às paredes interiores em que penduramos os quadros e as fotografias da nossa vida, é tudo uma questão de construção interior, na qual os fundamentos tendem a ser escondidos e por vezes só as paredes são expostas, com toda a sua lógica do gosto e da aparência, com toda a sua superficialidade. Não precisamos de fundamentos para viver, mas eles estão algures a suportar a nossa habitação. E volto sempre a Ruy Belo e ao "problema da habitação".

sexta-feira, agosto 04, 2006

obras

Os gestos repetidos: o bater do martelo sobre o escopro que perfura o cimento das paredes repletas de canalizações e tubos de plástico que conduzem a luz e a água que um dia iluminará e banhará os corpos que deambulam pelas casas à espera que as casas se cansem de tantos gestos repetidos e finalmente digam: habitem-me.