levante

textos sem sentido e outros

sábado, agosto 12, 2006

obras III

Lentamente, as coisas voltam aos lugares, os panos deixam de cobrir os móveis, o pó é recolhido como se recolhem os pedaços de memória nos dias em que devemos recolhê-los para prestar contas à vida. Em situações normais, uma parte do pó que se acumula nos móveis provém do nosso corpo e da pele que se renova, mas neste caso é quase todo de pedra e cimento, pó muito fino que se infiltra e persiste.
As limpezas são também ocasião de voltar a perceber como os objectos se arrumam. Passado um mês destapamo-los e eis que se desvelam como prisioneiros da escuridão. Então causam-nos espanto e interpelam-nos, porque o quotidiano os havia tornado banais. Por exemplo, as estantes dos livros, que se alastram perigosamente pelas paredes do quarto: há muitos anos que a poesia se habituou à estante mais baixa, bem rente ao chão (foi assim em todas as casas em que habitou, ela, a poesia). Sempre me justificou tal facto pela necessidade de estar o mais próximo possivel da terra. Sempre interpretei tal necessidade como uma questão física e elementar, não só pela ligação às forças da terra, mas também pelo esforço que implica o baixarmo-nos. A poesia implica esforço, humildade, reverência, um certo recolhimento.
Da disposição dos livros de poesia não há muito a dizer, cabem numa estante e estão arrumados por autor, se bem que de forma aleatória. Mas as extremidades são curiosas. De um lado a Bíblia, que antes de ser uma sagrada escritura é dos mais belos livros de poesia, daqueles a que volto regularmente e que nunca encontrou outro lugar senão ali em baixo, bem rente ao chão. Do outro lado Paul Celan, no canto mais escondido de todas as estantes, como se guardasse um segredo perigoso. Celan é perturbante e não pode ser exposto nem lido de forma leviana, não pode estar à mão de qualquer impulso numa qualquer noite em que alguém se lembre de ler poesia. Celan, mais do que qualquer outro, exige esforço e consciência dos limites, porque contra o desespero, não o simples sofrimento mas o desespero que se acumula na surdina dos anos, como ele tão bem mostrou, só existe uma solução: o suicídio. E é por isso que, apesar de toda a beleza silente da sua poesia, Celan está no canto mais escondido da estante.