levante

textos sem sentido e outros

sábado, agosto 26, 2006

distopia

2025.
Num dia de Verão os corpos dão à costa. Os nadadores-salvadores comunicam às autoridades marítimas, que entretanto têm barcos equipados com grandes redes que recuperam os corpos ainda flutuantes. São sobretudo africanos. Os nadadores-salvadores mais velhos dizem que de ano para ano a coisa está pior: só na praia de Alvor, desde o início do ano, já foram encontrados 1876 cadáveres. Imaginemos quantos não conseguiram passar e entrar na Europa.
Os turistas têm dificuldade em suportar as balsas clandestinas, as operações de resgate, o cheiro dos cadáveres, as imagens do desespero. Os autóctones exigem que as autoridades controlem a costa mas estas não dão conta do recado. As autoridades estão também voltadas para dentro, onde as bolsas de violência se começam a formar à imagem do que acontece noutros países europeus. Nalguns destes países são aos milhares os migrantes clandestinos que entram diariamente. São perseguidos, violentados, expulsos. Refugiam-se perto dos que vivem na mesma situação, perto também dos renegados urbanos, com os quais se revoltam. O terrorismo ganha novas formas. O poder concentra-se à direita - o medo e o desejo de segurança favorecem a direita.
Há coisas que deixam de fazer sentido. Um certo incómodo cultural percorre as consciências mais esclarecidas - as que percebem que o medo é a decadência da humanidade. De uma forma nunca antes experienciada nas democracias ocidentais, há questões que ganham contornos trágicos: O que é uma fronteira? O que é uma pátria? Por que é que o outro é outro? O que é um estrangeiro? Quantos seres humanos estão dispostos a abdicar do seu conforto quotidiano e civilizacional para salvar a vida de outros seres humanos?