levante

textos sem sentido e outros

sábado, agosto 19, 2006

obras IV

Uma espécie de fenomenologia:
As divisões da casa correspondem a necessidades do nosso corpo: comer, dormir, defecar, lavar, descansar, comunicar, estar...
Quando o corpo se farta da rotina das divisões, tende a subvertê-las: o descanso deixa de ser apágio do quarto, a comida circula pelos espaços ao sabor das actividades, os impulsos sexuais encontram satisfação na excentricidade. Tudo para que o corpo se renove.
A decoração introduz o gosto e a beleza, valores que parecem ter pouco a ver com o corpo (parecem, mas não...).
As obras esventram a casa, o corpo ressente-se porque a casa é o corpo e os hábitos do corpo. Criam-se novos hábitos.
As janelas e as portas renovam o ar. Quando não há janelas nem portas, o ar entra e a intimidade intimida-se com a exposição aos caprichos do tempo. O corpo ressente-se das correntes de ar. As portas batem e o corpo acorda de sobressalto.
O berbequim que agora fura a parede funde-se com a música, os gestos da escrita entorpecem-se.
E de repente, com o tempo, a casa já não corresponde a necessidades do nosso corpo. Casa e corpo reinventam-se constantemente, há gestos que se fundem com a matéria (um móvel que obriga a circular pela sala: a dança dos objectos).
De repente a casa é o sítio em que o corpo habita, mas esquecido. A imaginação e a subservação unem-se aos hábitos. Habitar e hábito têm a mesma raíz etimológica. O hábito pressupõe a repetição, mas nunca há a repetição do mesmo, nunca há identidade Por dentro da repetição existe uma diferença irredutível (Nietzsche, Deleuze).
O corpo não tem necessidades fisiológicas puras, estas são também, e sempre, hábitos. O corpo tem um elemento de diferença que o corrói por dentro e inquieta a habitação.
Nunca ninguém habitará de forma tranquila porque é-se sempre corpo. Nunca ninguém, numa casa ou na vida.