levante

textos sem sentido e outros

quarta-feira, março 28, 2007

grande

O JL que saiu hoje publica uns excertos inéditos de uma nova edição do Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa. A recorrência de novas edições explora muito bem o facto de Pessoa nunca ter dado indicações precisas acerca da inclusão e da organização dos fragmentos que constituem o Livro, tornando-o uma espécie de obra infinita e aberta. Retive apenas um desses excertos inéditos, que me parece condensar o carácter infinito de sentidos que percorre o Livro, bem como a grande espiral da vida a que poucos criadores têm acesso: "Grande é o homem que impõe aos outros o seu próprio sonho, os seus próprios sonhos. Para lhes impor os seus próprios sonhos tem, por isso, que sonhar sonhos que eles tenham, de certo modo, entresonhado para que deveras eles possam recebê-los."

domingo, março 25, 2007

estação

E agora que a primavera é oficial e o verde ameaça engolir a paisagem?

domingo, março 18, 2007

estética do desaparecimento - epílogo

Para resolver de vez este tema - o desaparecimento - comprei, tive de comprar um romance de que já ouvira falar bem e que me veio parar às mãos numa livraria. Trata-se do Doutor Pasavento, de Enrique Vila-Matas. O índice diz
I. O desaparecimento do sujeito
II. O que se dá como desaparecido
III. O mito do desaparecimento
IV. Escrever para se ausentar
e foi o suficiente para justificar a compra.
Além disso, na segunda linha da obra surge o nome de Montaigne, personagem literário-filosófico que sempre me fascinou. Montaigne, que com os seus Ensaios marca o aparecimento da subjectividade moderna, é também, desde logo, o grande mestre da dissimulação. Não esqueçamos que com Montaigne estamos ainda na época pré-cartesiana. O sujeito que existe porque pensa só viria mais tarde, em resposta directa ao sujeito montaigneano. Este, pelo contrário, surge não do pensamento, mas de pinceladas. "Sou eu mesmo quem me pinto", diz Montaigne na advertência inicial dos Ensaios. No ensaio chamado Do arrependimento, uma outra formulação vem pôr em causa a linearidade desse projecto: “Eu não pinto o ser. Eu pinto a passagem: não uma passagem de uma idade a outra, ou, como diz o povo, de sete em sete anos, mas de dia a dia, de minuto a minuto. É necessário ajustar constantemente a minha história. Dentro em pouco posso mudar, não apenas de fortuna, mas também de intenção.”
Portanto, o que se torna pertinente no Eu ensaiado e pintado por Montaigne, e que a fixidez do sujeito moderno foi progressivamente perdendo, é esta consciência do dinamismo que subjaz a qualquer auto-descrição. Em termos pictóricos, diríamos que o auto-retrato é a possibilidade da dissimulação mais subtil e mais profunda, que toca no íntimo da falha humana, na descoincidência entre o Eu e o si próprio. Kant dirá mais tarde que o tempo, enquanto forma pura, é a possibilidade de autoconhecimento e, simultaneamente, o mais profundo estilhaçar da subjectividade, marca de uma descoincidência racionalmente insuperável. Mas isto já é outra história...
Lerei o Doutor Pasavento com atenção, sabendo, contudo, que o tema do desaparecimento não se resolve pela escrita. Talvez se resolva com a vida, seja lá isso o que for.

sábado, março 17, 2007

estética do desaparecimento - uma teoria

Paul Virilio tem uma obra intitulada Estética do Desaparecimento (original fr. Esthétique de la Disparition). Como em quase todas as suas obras, Virilio analisa nesta a cultura contemporânea a partir de alguns conceitos basilares: tecnologia, visão, comunicação, velocidade, reordenamento do tempo... Este tipo de análise decorre necessariamente das intuições de alguns pensadores de inícios do séc. XX, nomeadamente Walter Benjamin e Ernst Jünger, que entreviram o poder da tecnologia na construção infinita das estruturas com que o homem se relaciona com o mundo e os outros. Todas estas perspectivas procuram, afinal, responder à questão: como é que um meio técnico afecta a vida do homem?
Ora a tese de Virilio parte de um a priori antropológico, o de que a arte do desaparecimento é intrínseca ao homem. Trata-se daquilo a que ele chama de “arte picnoléptica”, uma espécie de saber lidar com as ausências, com os desaparecimentos, com as ocultações. (A imagem com que Virilio abre a obra é esclarecedora: a ausência surge frequentemente ao pequeno-almoço, quando à nossa frente temos uma chávena usada e fora do lugar. Quem quer que fosse, ausentou-se. Assim os lençóis remexidos, os espaços vazios, os buracos na memória… A ausência pode durar apenas alguns segundos, até a nossa consciência regressar ao presente, mas ela aparece recorrentemente ao longo dos nossos dias.) Pode dizer-se que é uma arte pois implica uma aprendizagem de vida: podemos ser ensinados mas ninguém desaparece por nós, ninguém nos desaparece senão a nós. Freudianamente, diríamos que a amnésia infantil, implicando a sublimação e o apagamento do Complexo de Édipo, são essenciais a um desenvolvimento saudável do jovem.
Contudo, esse a priori manifesta-se de diferentes modos, consoante as épocas históricas e os instrumentos ao dispor de tão subtil "arte". As novas tecnologias, capazes de elevar a virtualidade e a velocidade das experiências humanas a patamares por vezes assustadores, proporcionam modos muito próprios de picnolepsia. Num mundo desrealizado pela imagem e acelerado por mecanismos mediáticos e comunicacionais que não nos deixam muito espaço para respirar, assistimos progressivamente à transformação das experiências humanas, e não apenas das comezinhas, mas também das fundamentais: o amor, a morte, a guerra, a memória, a vivência do tempo. Também estes são a priori que se transformam e reconstroem historicamente.
Não tenho o pessimismo de Virilio, não vejo, ainda, que toda a morte assuma a forma de mero acidente técnico, à semelhança do enforcamento de Saddam – embora para lá caminhemos. Contudo, parece-me inevitável que as nossas estruturas espácio-temporais e a nossa vida estejam a sofrer consequências extremamente profundas. Uma cultura que apela à visibilidade imediata e ao consumo desenfreado, uma cultura que nos põe ao dispor meios velozes de fuga ao quotidiano, uma cultura onde só não comunica quem não quer (a profundidade da comunicação é outra questão…) não se pode dar muito bem com uma estética do desaparecimento, com a arte de gerir as ausências, que é um processo muito delicado, tradicionalmente ligado à lentidão e ao padecimento. Sem disso nos apercebermos, experimentamos e vivemos no interior de novos mecanismos temporais, afectando as formas a priori da estética transcendental kantiana (a outra é o espaço, e também essa já tem vindo a ser profundamente alterada). A tal ponto que qualquer sujeito puro se desvanece, fazendo também ele parte deste enorme processo de desaparecimentos constantes. Daí que hoje, mais do que nunca, experienciemos uma esquizofrenia generalizada, pois as nossas estruturas não conseguem acompanhar as ramificações da realidade. Sujeitos larvares, sujeitos dissolvidos. Daí a moda dos psicólogos e a ânsia por tentar compreender aquilo que não tem explicação psicológica. A incapacidade de gerir o desaparecimento é directamente proporcional à necessidade de perceber a causa do desaparecimento. Mas aqui entra o grande pormenor: no seu íntimo, o desaparecimento não tem causa, ele é a dupla marca do devir (sobretudo o de Heraclito): "não te banharás duas vezes no mesmo rio"; "aquilo que é essencial tende a ocultar-se". E isto, num mundo onde deus parece o mais oculto dos seres, não implica a assunção do sem sentido da vida humana, como por vezes a ideia de desaparecimento parece transmitir; muito pelo contrário, implica a simples revelação de que a vida humana é movimento, e nada mais.
Mas caminhamos velozes, sem profetas nem sentido, sem percebermos a simplicidade, anjos do progresso.

terça-feira, março 13, 2007

prenúncio

Ainda nem sequer é primavera e já o levante vai deixando por aí marcas de devaneio estival. Os mosquitos e as mulheres eram hoje seres atarantados.

domingo, março 11, 2007

as batalhas

Nos domingos solarengos há pessoas que acordam cedo, demasiado cedo.
Levantam-se com um amargo na boca que não percebem se é das cervejas da noite anterior ou do pouco sentido que as coisas por vezes têm. Concluem que o embrutecimento da vida é um processo fascinante, só comparável àqueles jogos que as crianças são capazes de manter durante horas, como chutar uma bola contra a parede vezes sem conta, sem objectivo, sem mudanças de trajectória, apenas o mesmo gesto obsessivo de prolongar o seu próprio corpo contra a parede.
As pessoas levantam-se, dão a mais superficial atenção ao corpo: a cara lavada, a chávena de leite, a torrada impaciente.
Algumas dessas pessoas deslocam-se até ao mar, mergulham, regressam com sal e sol.
No caminho encontram velharias.
Uma dessas pessoas procura livros, tanto faz que estejam velhos: o tempo é uma página amarelada, uma ruga escavada no rosto. Encontra uma tradução de O Som e a Fúria que não conhecia e que, descobre surpreso, contou com a participação de Mário Henrique Leiria (curiosidade: um escritor que brinca com o absurdo traduz uma obra em que um personagem é levado ao suicídio pelo reduto absurdum de toda a experiência humana).
A pessoa procura imediatamente o início da segunda secção, aquela que durante meses lhe correu nas veias. Encontra. Comprova a esperada diferença de traduções. Mas o essencial está lá: Quentin lembra-se das palavras do pai no dia em que este lhe oferecera o relógio do avô: “Dou-to não para que te lembres do tempo, mas que o possas esquecer de vez em quando por momentos, e para evitar que gastes o fôlego a tentar conquistá-lo. Porque as batalhas nunca se ganham. Nem sequer são travadas. O campo de batalha só revela ao homem a sua própria loucura e desespero, e a vitória é uma ilusão de filósofos e loucos.”

sábado, março 10, 2007

aura ferroviária

No comboio, o rosto das pessoas baloiça de uma forma muito ténue, como se embalado pela paisagem que passa nas vidraças, telas velocíssimas que encarnam o tempo e rodeiam os rostos de uma aura muito própria - a distância próxima.

domingo, março 04, 2007

ainda sobre o desaparecimento

Não costumo referir-me a outros blogues, até porque acompanho poucos. Mas num daqueles percursos que apenas uma rede como a internet pode proporcionar, fui parar a este texto, e acho que ele faz sentido aqui e agora.

sábado, março 03, 2007

estética do desaparecimento (continuação)

Ao acordar, a mulher percebe que é uma mulher e toma consciência de que nunca vivera ou trabalhara junto da fronteira com Espanha. As únicas vezes em que enchera o depósito nesse país aconteceram quando voltava de alguma viagem pela Andaluzia. Portanto, tudo não passara de um sonho, portanto, já não podia sentir que o tempo tinha agido com a sua força irreprimível sobre um desaparecimento imprevisto, portanto, a vista e a memória (dos outros) pousavam-lhe sobre o peito, dificultando-lhe a respiração, tolhendo-lhe os movimentos.
Ao acordar, recordando-se do sonho, a mulher sente uma desilusão profunda. Como gostaria de ser a sua personagem, melhor, como gostaria que o sonho fosse real… Pensa em toda a coragem necessária para desaparecer de vez, sem explicações. Pensa também no dia que se avizinha, no quotidiano, nas portas que terá de abrir para sair de casa e enfrentar a luz, pensa nas palavras que terá de usar para mascarar de sinceridade a completa insensatez da sua vontade.
E decide que nesse dia não irá trabalhar. Entrega-se ao conforto dos lençóis, tacteia as portas do sono à procura de uma que a deixe entrar. Desaparece no interior do quarto, por dentro da escuridão, à procura de um outro sonho.

(E talvez isto, estas palavras, sejam uma recriação da vida, talvez sejam uma dedicatória.)