levante

textos sem sentido e outros

domingo, março 18, 2007

estética do desaparecimento - epílogo

Para resolver de vez este tema - o desaparecimento - comprei, tive de comprar um romance de que já ouvira falar bem e que me veio parar às mãos numa livraria. Trata-se do Doutor Pasavento, de Enrique Vila-Matas. O índice diz
I. O desaparecimento do sujeito
II. O que se dá como desaparecido
III. O mito do desaparecimento
IV. Escrever para se ausentar
e foi o suficiente para justificar a compra.
Além disso, na segunda linha da obra surge o nome de Montaigne, personagem literário-filosófico que sempre me fascinou. Montaigne, que com os seus Ensaios marca o aparecimento da subjectividade moderna, é também, desde logo, o grande mestre da dissimulação. Não esqueçamos que com Montaigne estamos ainda na época pré-cartesiana. O sujeito que existe porque pensa só viria mais tarde, em resposta directa ao sujeito montaigneano. Este, pelo contrário, surge não do pensamento, mas de pinceladas. "Sou eu mesmo quem me pinto", diz Montaigne na advertência inicial dos Ensaios. No ensaio chamado Do arrependimento, uma outra formulação vem pôr em causa a linearidade desse projecto: “Eu não pinto o ser. Eu pinto a passagem: não uma passagem de uma idade a outra, ou, como diz o povo, de sete em sete anos, mas de dia a dia, de minuto a minuto. É necessário ajustar constantemente a minha história. Dentro em pouco posso mudar, não apenas de fortuna, mas também de intenção.”
Portanto, o que se torna pertinente no Eu ensaiado e pintado por Montaigne, e que a fixidez do sujeito moderno foi progressivamente perdendo, é esta consciência do dinamismo que subjaz a qualquer auto-descrição. Em termos pictóricos, diríamos que o auto-retrato é a possibilidade da dissimulação mais subtil e mais profunda, que toca no íntimo da falha humana, na descoincidência entre o Eu e o si próprio. Kant dirá mais tarde que o tempo, enquanto forma pura, é a possibilidade de autoconhecimento e, simultaneamente, o mais profundo estilhaçar da subjectividade, marca de uma descoincidência racionalmente insuperável. Mas isto já é outra história...
Lerei o Doutor Pasavento com atenção, sabendo, contudo, que o tema do desaparecimento não se resolve pela escrita. Talvez se resolva com a vida, seja lá isso o que for.