levante

textos sem sentido e outros

sábado, março 17, 2007

estética do desaparecimento - uma teoria

Paul Virilio tem uma obra intitulada Estética do Desaparecimento (original fr. Esthétique de la Disparition). Como em quase todas as suas obras, Virilio analisa nesta a cultura contemporânea a partir de alguns conceitos basilares: tecnologia, visão, comunicação, velocidade, reordenamento do tempo... Este tipo de análise decorre necessariamente das intuições de alguns pensadores de inícios do séc. XX, nomeadamente Walter Benjamin e Ernst Jünger, que entreviram o poder da tecnologia na construção infinita das estruturas com que o homem se relaciona com o mundo e os outros. Todas estas perspectivas procuram, afinal, responder à questão: como é que um meio técnico afecta a vida do homem?
Ora a tese de Virilio parte de um a priori antropológico, o de que a arte do desaparecimento é intrínseca ao homem. Trata-se daquilo a que ele chama de “arte picnoléptica”, uma espécie de saber lidar com as ausências, com os desaparecimentos, com as ocultações. (A imagem com que Virilio abre a obra é esclarecedora: a ausência surge frequentemente ao pequeno-almoço, quando à nossa frente temos uma chávena usada e fora do lugar. Quem quer que fosse, ausentou-se. Assim os lençóis remexidos, os espaços vazios, os buracos na memória… A ausência pode durar apenas alguns segundos, até a nossa consciência regressar ao presente, mas ela aparece recorrentemente ao longo dos nossos dias.) Pode dizer-se que é uma arte pois implica uma aprendizagem de vida: podemos ser ensinados mas ninguém desaparece por nós, ninguém nos desaparece senão a nós. Freudianamente, diríamos que a amnésia infantil, implicando a sublimação e o apagamento do Complexo de Édipo, são essenciais a um desenvolvimento saudável do jovem.
Contudo, esse a priori manifesta-se de diferentes modos, consoante as épocas históricas e os instrumentos ao dispor de tão subtil "arte". As novas tecnologias, capazes de elevar a virtualidade e a velocidade das experiências humanas a patamares por vezes assustadores, proporcionam modos muito próprios de picnolepsia. Num mundo desrealizado pela imagem e acelerado por mecanismos mediáticos e comunicacionais que não nos deixam muito espaço para respirar, assistimos progressivamente à transformação das experiências humanas, e não apenas das comezinhas, mas também das fundamentais: o amor, a morte, a guerra, a memória, a vivência do tempo. Também estes são a priori que se transformam e reconstroem historicamente.
Não tenho o pessimismo de Virilio, não vejo, ainda, que toda a morte assuma a forma de mero acidente técnico, à semelhança do enforcamento de Saddam – embora para lá caminhemos. Contudo, parece-me inevitável que as nossas estruturas espácio-temporais e a nossa vida estejam a sofrer consequências extremamente profundas. Uma cultura que apela à visibilidade imediata e ao consumo desenfreado, uma cultura que nos põe ao dispor meios velozes de fuga ao quotidiano, uma cultura onde só não comunica quem não quer (a profundidade da comunicação é outra questão…) não se pode dar muito bem com uma estética do desaparecimento, com a arte de gerir as ausências, que é um processo muito delicado, tradicionalmente ligado à lentidão e ao padecimento. Sem disso nos apercebermos, experimentamos e vivemos no interior de novos mecanismos temporais, afectando as formas a priori da estética transcendental kantiana (a outra é o espaço, e também essa já tem vindo a ser profundamente alterada). A tal ponto que qualquer sujeito puro se desvanece, fazendo também ele parte deste enorme processo de desaparecimentos constantes. Daí que hoje, mais do que nunca, experienciemos uma esquizofrenia generalizada, pois as nossas estruturas não conseguem acompanhar as ramificações da realidade. Sujeitos larvares, sujeitos dissolvidos. Daí a moda dos psicólogos e a ânsia por tentar compreender aquilo que não tem explicação psicológica. A incapacidade de gerir o desaparecimento é directamente proporcional à necessidade de perceber a causa do desaparecimento. Mas aqui entra o grande pormenor: no seu íntimo, o desaparecimento não tem causa, ele é a dupla marca do devir (sobretudo o de Heraclito): "não te banharás duas vezes no mesmo rio"; "aquilo que é essencial tende a ocultar-se". E isto, num mundo onde deus parece o mais oculto dos seres, não implica a assunção do sem sentido da vida humana, como por vezes a ideia de desaparecimento parece transmitir; muito pelo contrário, implica a simples revelação de que a vida humana é movimento, e nada mais.
Mas caminhamos velozes, sem profetas nem sentido, sem percebermos a simplicidade, anjos do progresso.