levante

textos sem sentido e outros

sábado, março 03, 2007

estética do desaparecimento (continuação)

Ao acordar, a mulher percebe que é uma mulher e toma consciência de que nunca vivera ou trabalhara junto da fronteira com Espanha. As únicas vezes em que enchera o depósito nesse país aconteceram quando voltava de alguma viagem pela Andaluzia. Portanto, tudo não passara de um sonho, portanto, já não podia sentir que o tempo tinha agido com a sua força irreprimível sobre um desaparecimento imprevisto, portanto, a vista e a memória (dos outros) pousavam-lhe sobre o peito, dificultando-lhe a respiração, tolhendo-lhe os movimentos.
Ao acordar, recordando-se do sonho, a mulher sente uma desilusão profunda. Como gostaria de ser a sua personagem, melhor, como gostaria que o sonho fosse real… Pensa em toda a coragem necessária para desaparecer de vez, sem explicações. Pensa também no dia que se avizinha, no quotidiano, nas portas que terá de abrir para sair de casa e enfrentar a luz, pensa nas palavras que terá de usar para mascarar de sinceridade a completa insensatez da sua vontade.
E decide que nesse dia não irá trabalhar. Entrega-se ao conforto dos lençóis, tacteia as portas do sono à procura de uma que a deixe entrar. Desaparece no interior do quarto, por dentro da escuridão, à procura de um outro sonho.

(E talvez isto, estas palavras, sejam uma recriação da vida, talvez sejam uma dedicatória.)