levante

textos sem sentido e outros

domingo, março 11, 2007

as batalhas

Nos domingos solarengos há pessoas que acordam cedo, demasiado cedo.
Levantam-se com um amargo na boca que não percebem se é das cervejas da noite anterior ou do pouco sentido que as coisas por vezes têm. Concluem que o embrutecimento da vida é um processo fascinante, só comparável àqueles jogos que as crianças são capazes de manter durante horas, como chutar uma bola contra a parede vezes sem conta, sem objectivo, sem mudanças de trajectória, apenas o mesmo gesto obsessivo de prolongar o seu próprio corpo contra a parede.
As pessoas levantam-se, dão a mais superficial atenção ao corpo: a cara lavada, a chávena de leite, a torrada impaciente.
Algumas dessas pessoas deslocam-se até ao mar, mergulham, regressam com sal e sol.
No caminho encontram velharias.
Uma dessas pessoas procura livros, tanto faz que estejam velhos: o tempo é uma página amarelada, uma ruga escavada no rosto. Encontra uma tradução de O Som e a Fúria que não conhecia e que, descobre surpreso, contou com a participação de Mário Henrique Leiria (curiosidade: um escritor que brinca com o absurdo traduz uma obra em que um personagem é levado ao suicídio pelo reduto absurdum de toda a experiência humana).
A pessoa procura imediatamente o início da segunda secção, aquela que durante meses lhe correu nas veias. Encontra. Comprova a esperada diferença de traduções. Mas o essencial está lá: Quentin lembra-se das palavras do pai no dia em que este lhe oferecera o relógio do avô: “Dou-to não para que te lembres do tempo, mas que o possas esquecer de vez em quando por momentos, e para evitar que gastes o fôlego a tentar conquistá-lo. Porque as batalhas nunca se ganham. Nem sequer são travadas. O campo de batalha só revela ao homem a sua própria loucura e desespero, e a vitória é uma ilusão de filósofos e loucos.”