sábado, julho 21, 2007
segunda-feira, julho 16, 2007
os livros
1) Ludwig Wittgenstein: The Duty of Genius, de Ray Monk. É provavelmente a melhor biografia do filósofo austríaco, capaz de acompanhar simultaneamente a sua vida e o seu pensamento, num diálogo riquíssimo mas sem roçar aquela espécie de mitificação que por vezes esquece que os filósofos também são homens.
2) Directa, de Nuno Bragança. Do ponto de vista da experimentação da linguagem é menos inventivo do que A Noite e o Riso, mas as imagens pungentes e carnais estão lá. À primeira vista anda à volta do Estado Novo e de uma certa resistência, mas o tema mais subtil e incontornável é o Tempo. (Há um diálogo delicioso sobre Vila Real de Santo António.)
3) O Passo da Floresta, de Ernst Jünger. Poderia ser um ensaio datado pelo pós-guerra, mas não é. Nota-se que há ainda uma certa tensão e uma certa desconfiança em relação ao mundo (que são próprias de Jünger…), mas a metáfora do Titanic e da Floresta, representando um cepticismo fértil, tem talhado de forma marcante a minha “visão do mundo”. Uma passagem muito nietzscheana: “Ai daquele que recolhe desertos: ai daquele que não traz em si, e mesmo que seja apenas numa das suas células, a substância original, que garante sempre, uma vez mais, a fertilidade.” (Na última leitura descobri que é também um pequeno grande livro sobre o medo, as infiltrações do medo.)
4) Pena Capital, de Mário Cesariny e O Livro do Desassosego, de Fernando Pessoa. Um pela frescura, outro pela amplitude: um 2 em 1 a que volto sempre que as palavras me começam a secar.
5) Doutor Pasavento, de Enrique Vila-Matas. Há livros que nos caem nas mãos como se respondessem a uma pergunta. Perguntei: “existirá a pulsão do desaparecimento?” E o livro caiu-me nas mãos.
E passo a bola ao Mendonça, ao Pedro, ao Pathé, à mj e à Susaninha.
domingo, julho 15, 2007
inverness
Esse alguém que citava alguém sabe como por vezes os papéis têm de ser escritos e rasgados para que a angústia nos saia do bolso e das gavetas.
Portanto, deixo aqui esta longa citação, pois ela condensa tudo aquilo que às vezes tento dizer neste blog, num prolongamento infinito das ligações de sentido.
“Chego, agora, ao inefável centro do meu relato; começa aqui o meu desespero de escritor. Toda a linguagem é um alfabeto de símbolos cujo exercício pressupõe um passado que os interlocutores compartilham; como transmitir aos outros o infinito Aleph, que a minha tímida memória mal abarca? Os místicos, em transe semelhante, gastam os símbolos: para significar a divindade, um persa fala de um pássaro que, de algum modo, é todos os pássaros; Alano de Insulis fala de uma esfera cujo centro está em todas as partes e a circunferência em nenhuma; Ezequiel fala de um anjo de quatro asas que, ao mesmo tempo, se dirige ao Oriente e ao Ocidente, ao Norte e ao Sul. (Não é em vão que rememoro essas inconcebíveis analogias; alguma relação elas têm com o Aleph.) É possível que os deuses não me negassem o achado de uma imagem equivalente, mas esta informação ficaria contaminada de literatura, de falsidade. Mesmo porque o problema central é insolúvel: a enumeração, sequer parcial, de um conjunto infinito. Nesse instante gigantesco, vi milhões de actos agradáveis ou atrozes; nenhum me assombrou mais que o facto de todos ocuparem o mesmo ponto, sem sobreposição e sem transparência. O que os meus olhos viram foi simultâneo; o que transcreverei será sucessivo, pois a linguagem o é. Algo, no entanto, registarei.
Na parte inferior do degrau, à direita, vi uma pequena esfera furta-cores, de brilho quase intolerável. Primeiro, supus que fosse giratória; depois, compreendi que esse movimento era uma ilusão produzida pelos vertiginosos espectáculos que encerrava. O diâmetro do Aleph seria de dois ou três centímetros, mas o espaço cósmico estava ali, sem diminuição de tamanho. Cada coisa (o cristal do espelho, digamos) era infinitas coisas, porque eu a via claramente de todos os pontos do universo. Vi o populoso mar, vi a aurora e a tarde, vi as multidões da América, vi uma prateada teia de aranha no centro de uma negra pirâmide, vi um quebrado labirinto (era Londres), vi intermináveis olhos próximos perscrutando em mim como num espelho, vi todos os espelhos do planeta e nenhum me reflectiu, vi num pátio da Rua Soler os mesmos ladrilhos que, há trinta anos, vi no saguão de uma casa de Fray Bentos, vi cachos de uva, neve, tabaco, listas de metal, vapor de água, vi convexos desertos equatoriais e cada um dos seus grãos de areia, vi em Inverness uma mulher que não esquecerei, vi a violenta cabeleira, o altivo corpo, vi um cancro no peito, vi um círculo de terra seca numa vereda onde antes existira uma árvore, vi numa quinta de Adrogué um exemplar da primeira versão inglesa de Plínio, a de Philemon Holland, vi, ao mesmo tempo, cada letra de cada página (em pequeno, eu costumava maravilhar-me com o facto das letras de um livro fechado não se misturarem e se perderem no decorrer da noite), vi a noite e o dia contemporâneo, vi um poente em Querétaro que parecia reflectir a cor de uma rosa em Bengala, vi o meu quarto sem ninguém, vi num gabinete de Alkmaar um globo terrestre entre dois espelhos que o multiplicam indefinidamente, vi cavalos de crinas redemoinhadas numa praia do mar Cáspio, na aurora, vi a delicada ossatura de uma mão, vi os sobreviventes de uma batalha enviando bilhetes-postais, vi numa vitrina de Mirzapur um baralho espanhol, vi as sombras oblíquas de alguns fetos no chão de uma estufa, vi tigres, êmbolos, bisontes, marulhos e exércitos, vi todas as formigas que existem na terra, vi um astrolábio persa, vi numa gaveta da escrivaninha (e a letra fez-me tremer) cartas obscenas, claras, incríveis, que Beatriz dirigira a Carlos Argentino, vi um adorado monumento na Chacarita, vi a relíquia cruel do que deliciosamente fora Beatriz Viterbo, vi a circulação do meu escuro sangue, vi a engrenagem do amor e a modificação da morte, vi o Aleph, de todos os pontos, vi no Alpeh a terra, e na terra outra vez o Aleph e no Aleph a terra, vi o meu rosto e as minhas vísceras, vi o teu rosto e senti vertigem e chorei, porque os meus olhos tinham visto esse objecto secreto e conjectural cujo nome os homens usurpam, mas que nenhum homem olhou: o inconcebível universo.
Senti infinita veneração, infinita lástima.”
Jorge Luís Borges, O Aleph
o homem que vira
O homem que vira passa os dias a caminhar, ora na praça, ora no caminho para Monte Gordo, ora passando pela porta das pessoas que por aqui habitam. O homem que vira também fala, embora raramente. Pede cigarros e diz “vira-te”, sobretudo aos putos que sabem que o homem que vira vive numa grande solidão e precisa de partilhar as coisas importantes da sua vida. Ninguém que eu conheça sabe exactamente por que razões obscuras o homem que vira começou a virar. E tudo o que não tem explicação pertence ao reino da ficção e da loucura.
segunda-feira, julho 02, 2007
toma
quinta-feira, junho 28, 2007
a gramática
sexta-feira, junho 22, 2007
histórias realmente curtas - 6
sábado, junho 16, 2007
histórias realmente curtas - 5
domingo, junho 10, 2007
histórias realmente curtas - 4
sábado, junho 09, 2007
histórias realmente curtas - 3
Adulto: quantos anos tens?
Criança: estes. (levantando três dedos) E tu?
Adulto: eu tenho mais, mais do que os dedos das mãos. Tenho muitos dedos.
Criança: Uhm…?
Adulto armado aos cucos: Se os meus dedos são maiores sou mais velho que tu. Olha. (levantando o dedo indicador)
Criança: Uhm… (compara o seu dedo com o do adulto e aceita)
Adulto: o que importa é o tamanho dos dedos.
Criança: (põe-se em pé na cadeira, levanta o braço direito e espeta o indicador em direcção ao tecto) Sou mais velho que tu!
segunda-feira, junho 04, 2007
reler, relembrar
"Também a arte dionisíaca nos quer convencer da eterna alegria que está ligada à existência; somente não devemos procurar esta alegria nas aparências, mas atrás das aparências. Devemos reconhecer que tudo quanto nasce deve estar pronto para um doloroso declínio, que somos forçados a mergulhar os nossos olhos no aspecto horrível da existência individual – e no entanto o terror não nos deve gelar: uma consolação metafísica arranca-nos momentaneamente à engrenagem das migrações efémeras. Somos verdadeiramente, por curtos instantes, a própria essência primordial, e sentimos o desejo e a alegria inesperada da existência; a luta, a tortura, o aniquilamento das aparências nos parecem de ora avante como necessárias, em frente da intemperante profusão de inumeráveis formas de vida que se chocam e se comprimem, na presença da fecundidade superabundante da Vontade universal. O aguilhão furioso destes tormentos vem ferir-nos no próprio momento em que nos sentimos, de algum modo, identificados com a imensurável alegria primordial da existência, onde pressentimos, no êxtase dionisíaco, a imutabilidade e a eternidade desta alegria. A despeito da piedade, gozamos a felicidade de viver, não quando indivíduos mas quando confundidos e absolvidos na alegria criadora da vida total, única."
domingo, junho 03, 2007
intertextualidades
Muita segóvia batem estes almas do diabo
no escuro da cama
lépidas mãos sob a coberta os solitários
mas eu que os via e fui deles parte peço
piedade quanta haja para quem
deixou a mulher longe piedade para as fotos
desnudas os calendários sexy peço um pouco
de piedade isto chama-se Nambuangongo
não podendo ser de outro modo o que fazem no escuro
ocultam nas cartas como se quisessem deixar antes dito
sabes lá tu o amor
piedade para o desvio natural para a garganta
seca depois da emboscada
sul cuor della terra (Quasimodo)
ognuno sta solo sul cuor della terra
naquele terceto ao pôr-do-sol
os solitários da segóvia da mata
Poema de Fernando Assis Pacheco escrito em 1973, in Lote de Salvados (incluído na antologia A Musa Irregular)
histórias realmente curtas - 2
histórias realmente curtas - 1
segunda-feira, maio 28, 2007
domingo, maio 27, 2007
voltar
Voltar exactamente pela mesma linha, percorrer exactamente os mesmos quilómetros, fazer as mesmas paragens. Maior simetria de percurso seria impossível. Mas ainda assim (paradoxo das viagens) voltar para um sítio que já não existe, para uma casa que a cada dia, a cada semana, se desloca. Voltar para uma cidade onde a estranheza (questão urbana, humana?) se infiltra nas veias do quotidiano. Voltar para onde? Para quê?
Em todas as viagens, mas sobretudo nas mais longas, o que me custa verdadeiramente é o regresso, talvez por saber que regresso a um mesmo que é já sempre outro, ainda que nada na ordem natural das coisas se tenha alterado. E sentir tudo isto com uma acuidade dérmica, como se de pequeníssimas agulhas se tratasse. E saber que as picadas são momentâneas, em favor de uma certa saúde.
II
Talvez isto, esta divagação melancólica, me tenha surgido porque o comboio passou pela zona de Bias, entre Tavira e Olhão, atravessando a ponte ferroviária que há alguns anos atrás (10, 15, 20…) eu cruzava, por baixo e num outro sentido, de chinelos e calções, baldes para conquilhas e lingueirão, em direcção à ria e ao mar, ali onde a costa é um extenso areal que não tem fim. Que nunca teve fim. Se a minha infância teve um local de férias, só pode ter sido esse.
III
Mas este voltar de que falo não tem nada de nostálgico. A infância é uma divisão encerrada. Continuo, ainda hoje, sem saber o que é isso das inocências e das felicidades e das liberdades das tenras idades.
IV
No fundo, o que me interessa é a imagem de alguém que viaja num comboio à sexta-feira, o dia propício aos regressos. Levanta os olhos do ípsilon (também nos jornais há mudanças, por vezes para uma cacofonia ao sabor dos tempos), reconhece a paisagem, os caminhos por entre lodo e viveiros, as casas dos pescadores, a barreira dunal lá ao fundo. Mas o comboio é o tempo e o tempo, mesmo na linha do Algarve, é veloz. A imagem dissolve-se. Alguém volta a pousar os olhos no suplemento para-literário. Ou, talvez, sim!, lesse O Imortal de Borges, esse que foi todos e não foi ninguém (“Palavras, palavras deslocadas e mutiladas, palavras de outros, foi a pobre esmola que lhe deixaram as horas e os séculos”). Ou talvez nunca tivesse levantado os olhos. Ou talvez nunca ninguém tivesse passado férias em Bias. Que sítio é esse? Existe? Talvez alguém visse esse nome escrito a letras frugais num apeadeiro que não merece paragem. Talvez imaginasse um local adequado a férias de infância. Talvez houvesse camaleões e mergulhos no tanque das regas, o sol refulgindo nas peles imberbes, descobertas pelo levante. Talvez houvesse tudo isto ou nada disto.
V
Voltar é uma construção incessante. Voltar e sentir que a vida é um manto de Penélope que jamais se tece com linhas simétricas e seguras, mas que ainda assim não se pode deixar de esperar (a ilusão, a esperança) a seta de Ulisses. Essa é a única agulha que nunca nos sairá da pele.