levante

textos sem sentido e outros

sexta-feira, dezembro 29, 2006

atletismo

Rápido. As horas passam, os dias não descansam, as noites retornam, os frutos secam sobre os ombros das árvores, a humidade entra pelas frinchas das portas e invade os quartos onde ninguém descansa porque ninguém jamais existiu. A respiração é sôfrega. O ar rarefeito. Do céu caem deuses exaustos que perfuram a crosta da terra e se afundam nas profundezas do magma. Da terra nascem os falsos profetas que se dissolvem em nuvens de sonho, mascarados de alvura.
Rápido. O sentido foge depressa e os dedos são lesmas sobre o teclado.

sábado, dezembro 23, 2006

renovação

Dezembro é o mês em que tudo recomeça, não só por causa de Janeiro e do novo ano que se avizinha, mas sobretudo pelos dias que começam a crescer, dilatando a sua luz. Dezembro é, afinal, o anúncio sempre renovado de que um certo tempo existe nos astros, e que a incerteza trémula que se infiltra na pele com a chuva e o frio será um dia redimida, dando lugar aos dias radiantes em que os dentes sorriem e refulgem sob o sol.

sexta-feira, dezembro 22, 2006

desencontros II

Depois cruzaram-se num atalho que não levava sítio nenhum. Ambos haviam caído naquele lugar anónimo que une o espanto ao sentido. Cada um seguia uma direcção oposta, mas o atalho não tinha princípio nem fim. Não puseram sequer a hipótese de subverter os passos e tentar o salto que rasga as fronteiras da física. A gravidade é pesada. Os corpos são graves.

sábado, dezembro 16, 2006

desencontros

Cruzaram-se nas ruas de uma cidade adormecida. Não trocaram uma palavra, os gestos não se impuseram, a esquina era já ali. Seriam sempre estátuas que se cruzavam em movimento.

sábado, dezembro 09, 2006

o trabalho

Faulkner. Procurar a diferença no interior do tempo, sendo este concebido como uma relação entre séries: entre a série do passado e a do presente há uma experiência que circula, é virtual e por vezes actualiza-se em acontecimentos com sentido. Deleuze chama-lhe, por um lado, a síntese erótica do tempo, por outro lado, a forma pura e vazia do tempo. No interior dessa diferença que se move não existe identidade. A memória tem por detrás de si um devir-infância que a torna secundária. Entre as séries do passado e do presente há comunicação: sem ela a literatura seria ininteligível. Mas é a diferença que possibilita qualquer comunicação. É ela que trabalha por dentro da vida, para lá dos relógios que trabalham no pulso e nas mesas de cabeceira. O tempo da arte é outro.

segunda-feira, dezembro 04, 2006

as mulheres de Coppola

Desde que vi o último filme de Sofia Coppola, Maria Antonieta, há uma ideia que me persegue e que se relaciona com o ser feminino. Os filmes de Sofia retratam normalmente qualquer coisa que os críticos identificam com a dificuldade de amadurecimento das mulheres, como se estas vivessem num limbo em que as circunstâncias se apoderam da sua vontade, como se vivessem uma vida que não existe, como se fossem apenas uma representação da melancolia. Mas existe mais, existe também um tratado sobre o sofrimento, o qual percorre, de diversas formas, os três filmes maiores da realizadora. O que é estranho é que o sofrimento das personagens seja extremamente leve, que os seus passos se façam sobre nuvens e o único risco seja a possibilidade da vertigem e do vazio. A morte, se a há, o sofrimento físico, se chega a aparecer, é apenas o adereço de uma angústia que corrói por dentro, uma moínha. O que se torna asfixiante, pois nunca chega a existir redenção. As próprias "virgens suicidas" parecem não morrer... O mistério feminino persiste.
Por contraposição, Lars Von Trier leva a violência sobre as mulheres a um nível diferente, mais físico e frontal, tornando visível o sofrimento. Não existe nelas melancolia e a pouca angústia terá a ver com a injustiça a que as personagens estão sujeitas ou com os sacrifícios a que são submetidas. São mulheres mais "religiosas", pois procuram ou são levadas à redenção. São mulheres pouco misteriosas mas feitas de matéria, pisando o chão e usando o corpo (o misterioso passado de "Nicole Kidman" em Dogville é completamente anulado pela sua vivência na cidade...)
Duas visões distintas sobre o ser feminino, que cada um de nós, à sua maneira, poderá aplicar ao masculino. Mas duas visões que dirão muito sobre os estereótipos e/ou os traços que definem os sexos.
E prometo que tão cedo não voltarei a escrever sobre mulheres, pelo menos desta forma.

sexta-feira, dezembro 01, 2006

restauro ou restauração?

Não, não é restauração, é mesmo restauro. 30 de Novembro de 2006, por volta das 16h, um homem belisca o bico do obelisco na Praça de Vila Real de Santo António. Provavelmente verá Espanha no horizonte. Se sente alguma espécie de nostalgia pelo destino comum das pátrias, isso já não sei, pois os restauradores que atingem as alturas são seres inacessíveis.