levante

textos sem sentido e outros

sábado, outubro 28, 2006

frases com sentidos

1755. Lillias, 14 anos, a personagem central, foge de Lisboa antes do terramoto: ela vê a morte dos outros antes desta acontecer. Mas no caminho é apanhada por aqueles que fogem do terramoto: os que só vêem a morte dos outros depois desta acontecer. Junta-se a Cilícia, uma senhora mais velha, e ambas entram no convento de Mafra, onde dormem uma noite na cama das raínhas. Acordam famintas e apercebem-se dos guinchos das ratazanas que arranham as portas e atacam quem com elas se cruzar. Fogem e desmaiam. Lillias acorda ensopada no sangue que lhe sai das entranhas. Está a ser violada por um homem que mais tarde será enforcado, e ela sabe-o. Ao seu redor, outros homens excitados e futuramente enforcados, e Cilícia, que ri às gargalhadas. Esta última, apercebendo-se que a cena assusta a rapariga, e enquanto segura um naco de toucinho, diz:
"- Vale tudo, filha. Deus já cá não está."

Adaptado de Lillias Fraser, de Hélia Correia

domingo, outubro 22, 2006

a vida secreta da fotografia

Freud defende a existência de duas pulsões fundamentais: eros e thanathos, a pulsão da conservação da vida e a pulsão da morte.
A dada altura da sua reflexão em Câmara Clara, Barthes descobre que seria preciso interrogar a evidência da fotografia, não do ponto de vista do prazer, mas em relação com aquilo a que romanticamente se chamaria o amor e a morte. A primeira vez que descobri esta descoberta achei-a elegante mas não lhe percebi o sentido mais profundo.
Talvez hoje, porque é domingo: cada fotografia é simultaneamente um rasgo de vida e um rasgo de morte. Cada fotografia é um campo de batalha onde a esgrima do tempo com o homem alcança uma subtileza nem sempre perceptível aos olhos mais descuidados. Cada vida é um conjunto de fotografias, mas isso não acontece, como ingenuamente se pensa, pelo facto de a vida ser um álbum de recordações que tece a narrativa que lhe dá o sentido, mas porque a cada momento, a cada acontecimento, a cada instante fugaz, é o próprio amor e a própria morte que gemem por dentro do tempo, por vezes em surdina, por vezes em estridência. Para lá do prazer.

sábado, outubro 14, 2006

desvanecimento

Sobre um pertinente questionamento da ocultação da filosofia no ensino secundário e na vida dos seres humanos, por favor ler o ensaio de José Gil na Visão desta semana.

cidades planas

As cidades planas são serenas e têm bicicletas. Mesmo sendo movimentadas, as cidades planas são serenas. Há um equilíbrio que, suponho, terá a ver com a distribuição horizontal da luz e com o modo como esta atinge as paredes das casas. Há muitos ângulos rectos e a regularidade dos passos não é interrompida por subidas ou descidas. Assim são, por exemplo, Copenhaga e Vila Real de Santo António. Já Coimbra, porque acidentada, é uma cidade de intensidades, de desequilíbrios, de sombras irregulares.

sábado, outubro 07, 2006

uma baixa pombalina

A praça inclina-se com a tarde e as sombras tornam-se imensas, tocando as ruas geométricas de uma ponta à outra. Há pessoas sem dúvida, e também cães-preguiça espraiados nas ruas geométricas. O sol quase horizontal é de uma violência atómica para os olhos incautos. E há reflexos no chão, nas montras, nas retinas de quem passa. O rosto contorce-se, o corpo procura sombras, o calor venceu as estações e não se sabe já se Verão ou Outono. As vozes são castelhanas. As castanhas aguardam o tempo propício, exibindo vendedores impacientes que se agarram às folhas de jornal porque é essa a sua função e o seu destino. As ruas são geométricas porque a terra é instável e os homens travam uma batalha incessante para vencer a complexidade dos passos. As ruas aguardam a noite. As mulheres aguardam a menstruação. Os homens aguardam o preenchimento do tempo. As cidades guardam memórias. E a memória são pequenas setas que se entranham na pele dos amantes e dos caminhantes, pequenos rasgos de luz que invadem os olhos e as tardes inclinadas pelo sol.