levante

textos sem sentido e outros

segunda-feira, maio 29, 2006

tautologias do levante

É sempre a mesma coisa, eu sei. Todos os anos, por volta do tempo propício à saturação dos poros, o levante chega e um manto de calor percorre o país com um aroma de protector solar. Os membros desnudam-se, desentorpem-se, entregam-se à visibilidade. As casas aquecem. Os corpos suam. As noites ganham amplitude. Dir-se-ia que é uma característica do clima do nosso país, mas não, é um ciclo vicioso, é o hábito da natureza em fazer retornar, todos os anos, a saturação dos poros, esta teimosia que vem de África como um devaneio, melhor, como uma dança de espíritos que não encontram paz e se espalham pelo Mediterrâneo como partículas de loucura à espera de encontrar quem lhes dê abrigo.

sábado, maio 27, 2006

geometria

Não acontece sempre, mas por vezes há frases e gestos que se enquadram na nossa vida e lhe trazem uma evidência tremenda. Como se tudo aquilo que era confuso fosse repentinamente reduzido a uma imagem plana e límpida. É uma questão de geometria, de enquadramento das diversas linhas que tecem o tapete dos nossos dias. Não acontece sempre e raramente são estados permanentes.

terça-feira, maio 16, 2006

homem que viu o filme

"Quem muito pensa não casa."

no final do filme

"O momento mais doce é aquele que antecede a revolução."

wittgenstein II

"Há toda uma mitologia alojada na nossa linguagem."

wittgenstein I

"Nada é tão difícil com fazer justiça aos factos."

segunda-feira, maio 08, 2006

os crepúsculos

Saltamos, é o que devemos fazer. Só não percebo se saltamos por dever, no sentido moral, ou se o fazemos porque algo nos impele, numa imanência que tanto pode ser da fé ou do instinto. Ou simplesmente porque sim, numa reafirmação constante da humanidade em nós. Como se nos fosse possível realizar a humanidade em nós... Saltamos, ou pelo menos movemo-nos entre a luminosidade e a escuridão, trazemos as noites para os dias e pintamos os dias com o negro do absurdo, o que também é uma arte, uma poiesis, uma forma de fazer mundos.
Mas não consigo deixar de me espantar com a fatal proximidade que une o absurdo e o riso, fatal, sobretudo, quando ambos se fundem num ponto sem fuga e sem quaisquer buracos por onde a luminosidade possa penetrar. Aí sim, sem crepúsculos, não nos restaria senão uma lenta agonia no sem fundo. Mas saltamos, é o que podemos fazer. E os dias, com todo o seu jogo de luminosidades dão uma ajuda tremenda. As manhãs arrancam-nos do escuro, os interstícios são os pontos de fuga por onde subimos e sorrimos, não sei se donos do nosso lugar, firmes nas fundações que suportam as paredes de casa, se planando num tapete voador de uma fábula das mil e uma noites.

segunda-feira, maio 01, 2006

as tardes

As tardes, essas, são retalhos de vida que se alongam com o estender da primavera, junto da água fresca do tanque e da brisa que se escapa do mar em direcção à face dos homens sentados. A serenidade suscita o equilíbrio das faculdades humanas. As palavras são locais onde os poetas guardam segredos. As fotografias são lastros de tempo. As viagens recompõem o centro do mundo. Os reencontros são uma aprendizagem do esquecimento.
Kant, que diz coisas interessantes sobre a vida, diz algures que "em tudo o que pode suscitar um riso vivo e abalador tem que haver algo de absurdo (em que portanto o entendimento não pode em si encontrar nenhum comprazimento). O riso é um afecto resultante da súbita transformação em nada de uma tensa expectativa." É por isso que toda a vida é absurda, e é por isso que o melhor a fazer é rirmo-nos dela.