levante

textos sem sentido e outros

segunda-feira, novembro 22, 2004

domingo e laranjas

Desço a rua deserta de um Domingo matinal. O quiosque fecha-se depois de me vender o jornal. O ar, o sol, as pessoas envolvem-se na lentidão do bairro.
Desço a rua e encontro uma amiga de Coimbra. Há tanto tempo!, digo eu. Ainda por cá, pensei que já estivesses junto das tuas laranjas!, diz ela admirada. E resignado digo que não vejo o sul há mais de dois meses, que estou a fazer estágio este ano: muito trabalho, uma nova experiência, as aulas mais ou menos, os miúdos têm dias… enfim…
Pensei que já estivesses junto das tuas laranjas, disse ela naquele instante, num relâmpago de memória que me levou para longe, para sul, para mim. Às vezes as pessoas que não vemos há muito tempo têm o condão de nos reavivar a memória, de nos trazer de volta as sensações que estupidamente esquecemos na usura dos dias.
E então continuei a descer a rua, imaginando-me a percorrer a serra algarvia, a entrar nos caminhos de terra batida que, com tanto sol, devem fazer uma poeira desgraçada. Imaginei as saudações sorridentes e sinceras dos velhos da serra, os beijos peludos das tias, os cães que se alegram com os poucos carros que por lá vão passando. Chego aos Charcões – sei que cresci porque já não fujo com os cães para a ribeira, qual bicho do mato que surgia horas depois numa correria estrefegada; cresci porque sou um ser social, obrigado a articular palavras, sujeito a olhares inquiridores e perguntas sobre o passado e o presente e o futuro e a vida. Chego aos Charcões e percorro o laranjal. Procuro os frutos que se mostram mais maduros, enquanto o sol varre o vale e as abelhas zumbem ao redor de um silêncio envergonhado. Encontro uma laranjeira, pequena mas vivaz, cujos frutos parecem estar maduros. Desenrosco uma laranja da árvore, lentamente, delicadamente, como aprendi a fazer para não magoar um ser que alimenta os seus filhos. Descasco-a com dedos firmes; o odor libertado ainda é ligeiramente verde. Tirada a casca, racho a laranja ao meio e tiro dois gomos, que sugo e engulo numa volúpia quase carnal.
Lá em cima, na ravina, oiço o barulho de um veículo motorizado. Espreito e vejo que se trata de um “jeep safari”. Cumpro o meu papel de indígena artificial e saúdo-os com o braço no ar. Boa viagem pelas cinzas, digo em surdina, enquanto acabo de comer a laranja. Entretanto desprendo outra da árvore e caminho em direcção à ribeira, como se descesse uma rua de Coimbra num Domingo lento e melancólico, como se o sonho que sonho dentro dos meus passos não fosse ainda e sempre a reinvenção da memória, assim pegajosa, como o sumo de uma laranja madura.