levante

textos sem sentido e outros

sexta-feira, maio 27, 2005

o défice do meu país II

Aqui pelo sul há um hálito de verão. Aqui só bonomia e a lenta dissipação da vida que antecede a morte. Aos passos dos turistas sucede-se a fome serena dos indígenas, às noites quentes sucedem-se os dias de nortada, ao “tudo vai bem” subjaz o calor dos dias trágicos que, antes e depois dos gregos, anunciam ao mundo a frágil plenitude do sendo humano.
Na areia ventosa há chapéus-de-sol e o suave aroma a creme protector (factor 15). No vento de areia há palavras-murmúrios que esventram por dentro os ouvidos incautos. Férias, umbiguismo e maledicência, o Portugal que por aqui se vai mostrando, que todos os anos regressa como se não regressasse.
Na praia de uma baía há alguém que se senta a ler, percorrendo O Labirinto da Saudade de Eduardo Lourenço. Lê com o lápis, reescreve nas margens com a retina dos olhos, fala sozinho como se falasse com o mundo que lhe escapa pela ponta dos dedos e do recolhimento. A saudade nunca existiu por estas terras, pensa, parece-lhe coisa de gente amargurada, de cinismos históricos, de um enfado da vontade. A saudade, a (imaginária) abstracção de um corpo em falta. Num país vestido de imagens, a saudade é um imaginário reificado em palavras de mel, que lambemos como pachorrentos quadrúpedes afocinhados à fatalidade. Imaginário que recusamos recusar. Porque nunca descobrimos que as noites quentes são corpos de volúpia, porque nos contentamos em libertar a pele à parca voracidade de um sol quinzenal – e durante um ano ela é pudica como todas as palavras envergonhadas pelas divinas famílias da pátria, e não mais nos lembramos, e não mais nos expomos. Porque nos esquecemos que cada um está só sobre o coração da terra e um dia é noite e… merda Quasimodo! Em que raio de sol pegámos para matar a saudade?