levante

textos sem sentido e outros

segunda-feira, agosto 23, 2004

reflexões em torno do "Mito de Sísifo" de Camus

E há sem dúvida aqueles dias em que os objectos quotidianos aparecem como algo estranho, formando uma barreira intransponível que nos engole como um poço sem fundo. Uma cadeira que inexplicavelmente invade o nosso espaço, um livro cuja capa nos repugna, uma ferramenta que não sabemos usar, um garfo que nos viola. Mas esta experiência (e já é tempo de voltarmos a usar "experiência" sem um pendor científico) também nos é acessível na relação com outros seres humanos. Basta andar um pouco pelas ruas anonimamente movimentadas de uma grande cidade, onde os olhares fogem de si próprios, basta viver numa região invadida pelo turismo de massas, basta, no limite, atentar nos diversos genocídios que percorrem a nossa história. Todas estas experiências são a marca da possível estranheza do mundo e do outro humano, onde ambos se dissolvem no absurdo de existirem dentro de nós mas fora de uma relação necessária. Portanto, fora de qualquer imposição moral ou reconhecimento de diferença.
Pensar a partir desta vivência humana - que é sempre individual, subjectiva, relativa - é pensar no limite da possibilidade de pensar. Porque aí, onde o mundo se mostra sempre distante e onde o absurdo derruba os tijolos do nosso muro de racionalidade, aí há o vazio (ou aparecem os deuses ou surge o Outro de certas filosofias contemporâneas, todos eles soluções metafísicas na procura de um sentido para a existência humana).
E o vazio, ao contrário do buraco sartriano, não desperta a curiosidade e o fascínio; não há no vazio um espaço que possamos preencher com os dedos, tapando o desconhecido como se tapa os limites de um buraco. No vazio não há margens, só medo.