levante

textos sem sentido e outros

domingo, julho 25, 2004

sciroccu

Depois de alguns dias a viajar pelo centro e sul de Itália, percorrendo os trilhos menos turísticos desse país de encantos variados, a Sicilia foi a última etapa. Havia inúmeros vestígios gregos, muito sol e paisagens de vinha e trigo. Havia histórias da mafia e de estereótipos populares a precisar de revisão. As cidades, desorganizadas urbanisticamente e sujas q. b., davam a familiaridade necessária ao fácil acolhimento do estrangeiro algarvio. As pessoas eram quentes como o sol de julho, distantes como filhos de uma ilha esquecida pela Itália do norte, a dos empresários e da organização centro-europeia. (Curiosidade: a Sicilia foi a região onde Berlusconi teve maior percentagem de votos; diz-se que é pelos bons contactos que o senhor tem com as gentes locais e respectivas redes de negócios; diz-se que é porque o senhor tentou alterar as leis de forma a que alguns detidos da "cosa nostra" pudessem sair mais cedo. Coincidências... E quase todos os italianos com quem falei têm consciência desta situação. Incrível!)
Procurando inteirar-se da dita música típica siciliana, o estrangeiro descobriu um grupo chamado "sciroccu". Descobriu que "sciroccu", palavra de possível origem árabe, remete para o vento sul oriundo do norte de África, o qual traz um calor abrasador e por vezes uma neblina que cobre os ceús como uma manta de pó de areia. Também por lá existe o levante, vento leste que varre toda a costa mediterrânica e alcança mesmo a algarvia-atlântica, mas o "sciroccu" é sem dúvida o mais carismático deles.
Tudo isto - este relato de imagináveis memórias recentes - porque ontem, dois dias depois do regresso da Sicilia, estiveram 42 graus em Portimão. Olhando para cima, os olhos humanos apenas viam um tecido de ténue cor esbraquiçada, como uma manta de pó de areia. Diz-se que é calor de uma tempestade no norte de África. Não é de certeza levante, não há sequer o desvario da lua cheia.
Às nove da noite o sol escondia-se por detrás das falésias do João de Aréns. A água era um espelho. As centenas de pessoas que esperavam a morte do dia eram insignificantes. O estrangeiro regressado mergulhava no mar como se entrasse num mundo apenas seu, revestido de um veludo molhado pronto a acariciar a pele suada. Saudades do Atlântico. Memórias do "sciroccu" que o acompanha desde o coração do mediterrâneo. Há momentos em que o mundo parece estar sozinho connosco, num sussurrar sedutor que desvela tudo o que vale a pena existir. E isso sabe bem.