levante

textos sem sentido e outros

quinta-feira, julho 01, 2004

formas de vida

As cigarras existem no calor da noite, na escuridão das sombras tépidas.
Existem nos lugares a que sempre regressamos quando ainda não temos para onde ir, como que guiados pela ternura do hábito e dos gestos sinceros. Por vezes a lua cheia interrompe a solidez dos ramos e há palavras que rasgam o conforto da casa. E há sempre viagens que ficaram por fazer, e nelas há rostos esquecidos, e nos rostos rugas de olhar, e nos olhos o brilho tenaz que amarga as bocas incautas. E há sempre o desejo de expulsão, o apelo de um exílio forçado. Mas não, ele vem calmamente debruçar-se no parapeito da varanda; o dever foi cumprido. O parapeito é seguro, de betão trabalhado na usura dos dias. Nada de arrebatamentos, nada de gritos vitoriosos - já demasiados deuses desceram da montanha, e são tão poucos os vales que verdejam nesta terra ingrata. Ele vem calmamente, descendo um país de lampejos estridentes (os chaparros cercados por planícies de fogo são bailarinas mortas à espera de vento).
A linguagem é cifrada e inútil, como toda a insinceridade, como toda a poesia que algum dia ele há-de cagar como merda em papel branco. É assim porque tem de ser.
Como diria o outro inútil, tudo isto é um intervalo de vida, aquele lapso (de tempo) em que a porta se abre e as cigarras invisíveis dizem um mundo que sempre existiu, ali, à espera de todos os regressos.