levante

textos sem sentido e outros

quinta-feira, dezembro 18, 2003

A saída de Lisboa - II

Mais uma vez vinha a sair de Lisboa pela Vasco da Gama,
o rio colado ao céu pelo azul-cinzento daquela lenta hora da tarde, e pensava num post anterior que havia tido um cenário idêntido. Pensava no post porque não podia já recuperar as emoções e as imagens que construí, que nunca existiram, que resultaram, afinal, da tentativa de escrever algo bonito - palavra ingénua, eu sei, mas gosto sempre de acreditar que há algo por detrás da palavra - para esta estupidez que é termos por vezes alguém que nos ouve.
Mais uma vez vinha a vogar sobre o Tejo,
enfeitiçado por Sinuhé, El Egípcio, tradução castelhana da fabulosa obra do finlandês Mika Waltari. Levantei os olhos e reconheci o cenário de uma anterior viagem de expresso. Ao meu lado já não estava uma brasileira nordestina mas uma algarvia de Albufeira que dormia, suponho, ou fingia ter os olhos fechados para que o vazio do tempo se esgotasse mais facilmente.
Mais uma vez vinha a precisar de ver a outra margem do rio,
e ela escondida, magoada, distante. Casualmente, sem pensar nas consequências do meu acto, tinha colocado no discman The Köln Concert de Keith Jarret (ia correndo a primeira parte...inqualificável...), e tudo se conjugou para que o autocarro descolasse do chão e eu perdesse a gravidade que subjuga os corpos terrestres, e todo o meu corpo, mesmo sem a ajuda de substâncias ilícitas, irrompeu pela margem insegura onde o tempo dos relógios não sabe entrar, onde os nomes das pessoas deixam de ter significado, onde finalmente perdemos as roupas e as maquilhagens e tudo o que fica é a pele nua, exposta, vulnerável.
Mas tudo isto é mentira, tudo isto é impossível. Ou talvez não.