levante

textos sem sentido e outros

terça-feira, dezembro 02, 2003

Manuel

Durante muito tempo, Manuel Teixeira-Gomes não era para mim mais do que o nome de uma escola secundária de Portimão, aquela que nunca frequentei mas que todos os dias via. Não me parece errada a ideia de que – até determinada idade e embora haja quem nunca se livre desta vicissitude – os nomes de pessoas atribuídos a ruas, praças, instituições e outras coisas mais que os homens acham por bem qualificar com a ausência dos ilustres, acabam por dissolver a própria pessoa que se pretende homenagear. Portanto, Teixeira-Gomes era nome de escola, tal como 25 de Abril era nome de Avenida, Gil Eanes nome de praça onde havia campos de jogos e baloiços, D. Carlos I rua onde a mãe trabalhava, onde eu bebia galões no café da frente e onde passava horas a brincar num armazém poeirento e cheio de brinquedos estragados. Isto quando saia da escola, primeiro da Camilo Castelo Branco, e depois da outra secundária, a António Aleixo, que julgo ser poeta popular mas de quem nunca, deliberadamente, tentei saber alguma coisa, quando saía da escola, digo, e não havia autocarro para apanhar junto do estádio do Portimonense, um dos poucos espaços da cidade com um nome decente e despretensioso (bem, já chega de falar da intimidade, dos factos íntimos, dessa coisa da qual não quero perder o pudor de tornar pública...).
Mais tarde esse nome, Teixeira-Gomes, associou-se também à lista dos presidentes da República. Penso que isso se tornou mais patente após uma qualquer visita ao mísero – porque pequeno, porque tristemente revelador do valor da cultura para o Algarve – museu de Portimão, que por acaso também “tem o nome”, desculpem, também se chama Teixeira-Gomes. “Ter o nome” já significa ter algo de exterior, ser qualificado por esse exterior, receber um simbolismo. Portanto, para a intenção deste texto, as coisas “chamam-se”, “não têm nomes”.
Depois conheci um trineto de Teixera-Gomes, soube de peculiaridades de que entretanto me esqueci, aprendi que ele até era um razoável escritor, que gostava de viajar.
E agora, mais recentemente, soube também que ele é o primeiro escritor, o primeiro observador oficial do “levante”. Eleito por maioria absoluta, com um voto a favor e zero contra, sem abstenções, creio ser esta a eleição menos polémica da história algarvia.
Senão digam-me, porque posso estar enganado, que outro foi capaz de dizer isto:
“Eu julgo que a realização perfeita da paisagem marítima grega, tal como os poetas da antiguidade a conceberam, está no troço da costa do Algarve, entre a Ponta do Altar e a Ponta da Piedade, isto é, desde a barra de Portimão até ao fecho da baía de Lagos”.
Embora, como é óbvio isto só fosse possível “antes de as fábricas de conservas de peixe – indústria aliás muitíssimo apreciada e meritória – terem empestado toda a beira-mar, e antes de haver começado a aparecer, sobre as rochas, essa linha de chalés que desonra e conspurca a natureza, seja onde for que ela se arme nos moldes gregos.” (“Sobre a paisagem grega”, de 1926, in Agosto Azul)
Bem, as fábricas já fecharam e são pertença de gatos e toxicodependentes, os chalés foram substituídos pela solidez do betão, inventou-se o néon, a música das discotecas que se espalha como um sussurro sobre a praia, inventaram-se as marinas e os jet-skis, mas ainda assim fecho os olhos, limpo as encostas, e sei Manuel, que não precisavas de seres uma escola para teres razão.