levante

textos sem sentido e outros

sábado, novembro 22, 2003

Para quem tiver paciência e interesse pelo que se vai passando por Coimbra...(texto a sair brevemente na revista RELER da faculdade de letras da universidade de coimbra, revista cuja fraca periodicidade e participação deveria ser por si própria uma questão a pensar. Tentamos renová-la...)

A MÃO DE VELUDO

A colocação das questões. Ou o tempo e o modo como o vivemos.
No turbilhão das queixas e das manifestações académicas, onde por vezes as intenções se tornam dúbias e os efeitos se mascaram de uma ineficácia preocupante, parece ter caído em desuso o fomentar do autoquestionamento e o trazer à reflexão as bases que sustêm a nossa relação com os outros no interior de uma instituição universitária. Quero com isto chamar a atenção para uma realidade que, parecendo à partida demasiado ténue, é ela própria um dos pressupostos fundamentais do ensino, quer este seja básico, secundário ou superior. A relação entre as pessoas, a força dos seus poderes institucionais, as suas aptidões pedagógicas, a sua sensibilidade à diferença, as formas de hierarquia social e cultural, o ambiente em que se processam os cursos e as aulas, são, na minha opinião, factores essenciais para a compreensão de alguns dos problemas mais profundos do ensino universitário em Coimbra.
Os tempos que vivemos obrigam-nos a perguntar o que se exige de uma universidade e das pessoas que a compõem. Este é um dos pontos de partida deste texto. Essas pessoas não devem estar isoladas do mundo que as rodeia, sobretudo neste momento crucial em que a guerra, o fundamentalismo, a globalização económica e cultural desenfreada, os problemas ambientais, a diferença e exclusão social entre ricos e pobres ou a aproximação às fronteiras da biotecnologia nos exigem muita capacidade de reflexão, muito espírito crítico perante a informação, enfim, muito esforço para parar, escutar, travar o ciclo de imagens e apelos que a sociedade de consumo põe ao nosso redor. Estas questões não terão necessariamente que nos deixar obcecados, mas, no mínimo, podemos tentar ver de que forma o nosso conforto e as nossas preocupações quotidianas nos distanciam delas.
Uma instituição educativa não deve simplesmente preparar ou produzir autómatos que ocupem lugares num determinado mercado de trabalho, mas deve acompanhar essas exigências de uma forma lúcida, transmitindo essa lucidez às pessoas que pretendem receber uma educação. Cria-se, se isto não acontece, uma disparidade entre a sociedade e o ensino universitário, como se os estudantes só entrassem naquela ao adquirirem o estatuto de trabalhadores.
Algumas das formas de contrariarmos a massificação cultural e de irmos além do canudo podem passar pelo experienciar de actividades que rompam com o instituído do mercado cultural-económico de Coimbra, pela abertura de novos caminhos de intervenção, de expressão artística, de debate intelectual, de diversificação dos conceitos da faceta boémia da cidade – já há demasiados empresários nos bares, nas queimas e nas latadas... e há também o ciclo vicioso do jantar-convívio-de-curso-para-pagar-carro-da-queima-das-fitas, como se toda a actividade proporcionada pelos e para os frequentadores de um curso se devesse resumir a esta pobreza. Mas tudo isto implicaria um trabalho mais profundo de sensibilização e de aceitação da diferença, algo que as tradições, o sistema de Coimbra, as suas fracas infra-estruturas e a morte parcelar da história e arquitectura da cidade – relação espaço-pessoas, espaço-animação – continuamente insistem em anular.

Sobre as formas de relação. Ou o peso dos nomes.
Há também toda a questão, no mínimo curiosa, que envolve o trato das pessoas relacionadas com esta Universidade. A cultura e a própria linguagem portuguesas são bastante ricas na estratificação do relacionamento interpessoal. Há o tu, o vossemecê, o você, o senhor, o Excelentíssimo, a Sua Eminência, enfim... (ao nível académico há outros tantos...) Questão de finesse, dignidade civilizacional ou riqueza linguística, diriam alguns, questão de atavismo, diria eu. Não tanto pela cordialidade sincera que essas formas de trato podem transmitir, mas pela necessidade que alguns sentem de ter de se valer dos nomes, consumindo-se no orgulho da sua posse. É óbvio que, como forma de promoção e motivação pessoal, as pessoas pertencentes a instituições académicas têm de ver o seu trabalho reconhecido. Mas será que o mérito deve basear-se meramente na apresentação de uma tese ou na publicação de uns quantos artigos? Mas será que não há nada de errado quando os regentes de um curso ou de uma cadeira são definidos pela sua hierarquia e não pela vontade e capacidade de trabalho, e não pelo espírito de diálogo e de inovação? Talvez a problemática não seja a do trato, mas o de que se oculta neste.
Esta questão também se torna pertinente ao nível dos estudantes. Aqui, mais uma vez, o problema não é tanto o título de doutor, mas sobretudo a insipidez dos muitos que defendem acerrimamente a sua utilização, como se pelo mero uso do nome se tornassem diferentes, melhores, mais capazes, enfim, mais aptos a subjugar os que se encontram num nível mais baixo da hierarquia (calma, não sou comunista!, mas não é preciso sê-lo para verificar quanto deste imaginário está cheio de conotações sociais arcaicas, tendendo a reproduzir algo de semelhante à lógica do senhor e do escravo. Só que neste caso, espantemo-nos, a hierarquia é determinada pelo número de anos que alguém demora a tirar o curso). Ah, e por favor não me venham falar de integração, o que normalmente se faz é a des-integração da personalidade, da diferença que cada um traz e que poderia contribuir bastante para a abertura dos horizontes e dos interesses. Ah, é a tradição!, e o que são as tradições na contemporaneidade? São objectos isolados, etéreos? Mas ainda há quem pense que a cultura se deva limitar à conservação dos monumentos e do passado, à manutenção do que herdamos? Não será a cultura a própria capacidade de transformação? Ah, é a tradição!, algo que deve planar no ar sem se questionar, sem se tentar ao menos ver que consequências negativas pode estar a ter no espírito crítico das pessoas, na sua liberdade de pensar e de experimentar livremente outras vivências que a cidade e a academia podem proporcionar. Ah, temos a liberdade de ser anti-praxe!, tal como, “busheanamente”, temos a liberdade de estar do lado do bem ou do mal. Não, desculpem, as coisas são bem mais complexas, a pressão reveste-se de diversas formas, esta logicazinha de Coimbra, esta falta de abertura, não nos ajuda muito a compreender o tempo que vivemos e que vamos fazendo.
Quanto aos docentes, alertaria para a necessidade destes se valerem menos dos seus títulos e passarem os olhos pelas suas práticas pedagógicas. Esta questão não é nova, e só não percebo porque é que os responsáveis que realmente têm poder e consciência dos problemas da Universidade ainda não pressionaram os docentes no sentido de uma autocrítica, ou porque é que não adoptaram as soluções mais realistas e eficazes dos cursos de formação psicopedagógica e da avaliação dos docentes. Quando – ó paradoxo dos paradoxos! – nas minhas disciplinas psicopedagógicas me dizem que terei de ser um futuro professor aberto à diferença dos alunos, atendendo às suas necessidades, aos seus contextos sócio-culturais, tentando abdicar um pouco dos meus preconceitos, adaptando-me ao ambiente de uma escola, à situação de uma cidade, ao contexto de um país, ao mundo que gira vertiginosamente e nos exige, e nos exige... ó teorias! Bem, quando por um lado me pedem isto, como me poderei sentir se, por outro lado, ao mesmo tempo, sofro ou conheço experiências de ensino que vão no sentido contrário. É preciso ter estômago, ou então comer e calar, digerir sem ruminação, porque em breve sairemos daqui para outro sítio qualquer.
Pronto, reconheço que nós, alunos, também somos bastante criticáveis. Há uns anos deram-nos o título de geração rasca. Pois acho que, hoje em dia, somos mais a geração rascasso, esse peixe muito comum nas costas portuguesas, que se encontra habitualmente junto das rochas, delas se alimentando e com elas se protegendo do movimento das marés e das ondas. Raramente o rascasso vem à superfície, e quando o faz, quando sai das calmas profundezas em direcção à luminosidade que traz ideias e vontade e espírito crítico e vida, quando o faz, precisa de ser alimentado e engodado. Cabe aos pescadores – será necessário dizer professores e responsáveis educativos? – essa função de engodo, essa paciência que toda a pesca implica. Que desresponsabilização é a sua se, no dito ensino superior, se limitam a cruzar os braços, contribuindo assim para a massificação das reduzidas competências dos alunos e para a relativização das práticas educativas. Perdoem-me as generalizações abusivas e próprias de um jovem inconsciente, mas é preciso que as portas dos seus gabinetes estejam mais tempo abertas. É preciso que também eles superem certos preconceitos, vindo para as aulas e discussões inesperadas com a abertura suficiente para recuarem e verem quanto de humano e falível ainda têm. É preciso vê-los a ter deleites imaginários, orgasmos intelectuais, verdadeiras orgias com os alunos. Eu sei que na Faculdade de Letras o desconforto das salas dificulta qualquer prazer, mas até a rígida madeira seria esquecida se o tempo se deixasse enganar pelo desafio e a descoberta. Ao longo dos anos o professor universitário acumula um mundo de saber. Isto não tem necessariamente uma conotação negativa, sendo mesmo necessário para a aquisição de boas competências culturais e intelectuais. Mas o que acontece quando essa acumulação se fecha e contamina a prática pedagógica, quando a ânsia ou o desinteresse afectam a transmissão dos conhecimentos, não permitindo a visão de outros pontos de vista, a aceitação de uma diferença incondicional? O que acontece quando a linguagem – condição do pensamento e veículo de transmissão do saber e da cultura – se torna uma técnica incapaz de sair do rumo definido, incapaz de se transformar e de trazer o aluno ao seu encontro? O que acontece quando esse isolamento influi na própria relação entre os professores, dificultando o diálogo e a promoção de actividades conjuntas onde realmente a inteligência e a capacidade de investigação se ponham em acção, sem receio de abrir brechas nos redutos do saber? As coisas não estão assim tão mal, mas a possibilidade destas questões reflectirem uma realidade deve fazer-nos pensar.

A mão de veludo.
Imagine-se dois corpos. Imagine-se uma mão de veludo a passar suavemente pela pele de um outro corpo, a despertar a camada capilar, a querer a carne sem lhe tocar, a entumecer o sangue que corre intensamente nas veias e que também ele quer a mão. Ambos os corpos se deslocam. Todo o confronto que perdura e não se esquece faz-se na base deste contacto, deste movimento da mão. Poder-se-á aplicar isto ao ensino, à atitude de um professor, à relação entre os estudantes, ao imaginário e à mentalidade de uma cidade que sabe o seu lugar no mundo? Sim, tudo isto poderá ser a forma dissimulada de suscitar o desejo, uma relação erótica entre um saber instituído e um saber que se quer saber, que se procura a si próprio. E nada mais.

09/04/2003

(Provavelmente devido à minha pretensiosa desmesura, ou talvez à ausência de debates sérios no interior da academia, este texto é apenas o excerto de um outro que tomou proporções exageradas, as quais vieram a resultar na abordagem de questões relacionadas com o associativismo e a tradição coimbrã. Terei todo o gosto em facultar o resto do texto e em debatê-lo, parcial ou totalmente, com os milhares de colegas e cidadãos -certamente- interessados.)