levante

textos sem sentido e outros

sexta-feira, outubro 17, 2003

Do tempo

O que mais gosto em Lisboa é a saída, a ponte, o rio. Só ao sair pousei o jornal sobre as pernas, debruçando os olhos pelas janelas do autocarro, como que sentindo o apelo de uma imagem sempre diferente e generosa. A brasileira nordestina lançou um olhar de soslaio, talvez perscrutando no meu rosto algum problema. Quanto muito melancolia e vício fotográfico, pensei eu na altura, tentando autojustificar o olhar fixo no azul abafado de fim de tarde que não deixava ver a outra margem.
Contemplava.
E de repente, que é como todas as coisas belas acontecem, não era já eu perdido e triste com a incerteza da vida, não era já eu num veículo cujo murmúrio mecânico se misturava com a música de fundo de uma qualquer estação de rádio. De repente não pude conter um breve e tresloucado sorriso, era eu leve e calmo a vogar sobre as águas do Tejo.
(Algumas horas antes, noutra viagem, a conversa passou pelos infinitos humanos e os deuses da carne. Mas para comprender não é preciso conceitos e muito menos sistemas fiósóficos. Bastava ver a margem que agora se impunha ao nevoeiro, a terra que dava sentido à ponte, o hábito de acreditarmos que as pequenas coisas humanas têm sentido.)
Suponho ter olhado para o lado a retribuir o soslaio. Comprendera o gesto silencioso. Também ela vogava, também ela sorria.