levante

textos sem sentido e outros

sexta-feira, outubro 17, 2003

...continuando (para já apenas na questão da democracia e liberdade)
Antes de mais parece-me que, após reler os nossos textos, deveríamos ter mais cuidado na relação entre democracia e liberdade. Reconheço que por vezes faço colagens abusivas...
Tens o meu apoio na urgência da denúncia das falácias e aporias que rodeiam e constituem a democracia. Talvez nunca tanto como hoje a força e o simbolismo das palavras possam jogar em campos tão diferentes e por vezes contraditórios. Ouvimos falar em liberdade, democracia e “campo do bem” como se tudo isto não necessitasse de explicitações. E ainda mais surpreendidos ficamos quando o “bem” nos parece um “certo mal” e sentimos dificuldades em justificar porquê. Os ortodoxos têm posições fáceis e – por vezes infelizmente – demasiado visíveis e assimiláveis.
Na minha leitura das concepções democráticas americanas pós-11 de Setembro – e talvez para isto necessitasse de conhecer melhor as características do pensamento neo-conservador, o qual nos deveria alertar para a existência de uma estrutura e de uma determinação ideológica que vão muito para além da aparente ingenuidade que muitos gostam de atribuir à administração Bush (se este posicionamento ideológico pode ser considerado como ingénuo em termos histórico-culturais, não o deveria ser em relação à sua força, funcionalidade e estratégia) – o terrorismo funciona como uma dupla justificação: 1) das apetências aglutinadoras (não gosto de usar imperialismo...) e de controlo geo-político, as quais tendem a conduzir a uma maior estabilidade no liberalismo económico que se mascara de neo-conservadorismo – trata-se, no caso do Médio Oriente, de apaziguar um cenário importante da economia mundial; 2) da necessidade dos EUA realizarem uma “guerra preventiva”, ou melhor, saindo um pouco do campo da má retórica, uma guerra “pró-activa”, contra um inimigo que consideram ameaçar a própria segurança dos seus cidadãos e o normal funcionamento das estruturas do país.
De facto, e agradeço-te por me alertares para isto, a justificação da administração Bush não é a da democracia, é a do combate ao terrorismo. Contudo, poderíamos ser tentados a ver por detrás da luta contra o terrorismo uma tentativa de melhorar a democracia, retirando da sua cena os elementos considerados perigosos para a liberdade individual – raramente o terrorismo se torna paranóia colectiva se não for atiçado e relembrado, algo que os EUA são peritos em fazer... Ora não me parece que, fora do contexto simbólico, os americanos reconheçam a necessidade de vislumbrar uma nova forma de democracia por detrás dos seus ataques a países ditos terroristas. Porque, parece-me, não é esta a estrutura do pensamento pragmático neo-conservador. A este não interessa a perfectibilidade da democracia, a complexidade das reconstruções, e daí que ele faça dicotomizações (bem e mal) e use uma lógica de força e choque. Se a democracia funciona como bandeira simbólica é porque não pode funcionar como bandeira concreta. E para compreender isto na sua condição aporética é essencial aquilo que tu dizes, erroneamente assinalando como meu esquema: “No teu esquema, Bush ataca o Iraque em nome da democracia (liberdade), impondo um regime político dissonante das características da sociedade iraquiana. Poderíamos subtrair do seguinte esquema um ataque à liberdade democrática, dado o não-universalismo.” Repito, não é o meu esquema, mas é o esquema simbólico de Bush, não é uma justificação, mas é a bandeira que branqueia e desvia as atenções das justificações, sem contudo se pôr em si própria na discussão.
Tem força simbólica afirmar-se que é preciso dar democracia a um país, mas subtraindo-se a democracia das razões do ataque (a democracia é um símbolo, não uma justificação) retiramo-la também do debate e da discussão, e assim a democracia base americana, o modelo, a intocável, continua sem ser criticada ou repensada. Algo que seria feito se aquela fosse posta no mesmo plano do combate ao terrorismo, onde, por exemplo, se reflectiria sobre a possibilidade dos modelos americanos de democracia e de liberdade poderem eles próprios fomentar os fundamentalismos e os terrorismos.
Tem força simbólica afirmar-se que é preciso dar democracia a um país, e quando as justificações falham, quando as armas de destruição maciça não são encontradas, essa bandeira, sem ser discutida, continua a ser acenada – e daí que para os interesses americanos até seja positiva uma certa instabilidade no território, pois a principal preocupação torna-se assim, não o comprovativo das justificações, mas a atribuição de um governo supostamente democrático, o qual, num outro sentido da palavra, não deixará também de ser simbólico, preenchendo as medidas da ocidentalidade e sendo muito pouco concreto, muito pouco atento à cultura local.
É mau que a democracia e as liberdades políticas sejam postas no plano do simbolismo inócuo e da propaganda.
São estes alguns dos problemas dos signos que carregam um peso cultural muito grande, como o de liberdade, democracia, felicidade, etc. Estão demasiado próximos e demasiado afastados de nós.