levante

textos sem sentido e outros

terça-feira, setembro 30, 2003

Pensamento matinal

A liberdade da blogosfera não está tanto na possibilidade universal de todas as pessoas terem algo a dizer num qualquer momento da sua efémera vida, está na aparente e impensada (para já) dádiva que todo o blogue é. Dádiva no sentido de desprendimento subjectivo, de abertura ao desconhecido (embora neste meio ainda haja muitos des-conhecidos e ajustes de contas...) e ao contacto virtual. E isto implica trabalhar a própria liberdade, tomá-la, sentir-lhe o calor e o frio, não a assumindo como algo de adquirido. A liberdade só existe quando a consequência dos seus efeitos se faz sentir. Penso que as constatações teórico-políticas são anacronicamente decorrentes desta sensibilidade.
Escrever é, paradoxalmente, o ciúme e a libertação do ser, a posse e a perda, e é para aqui que eu, sublinho EU, gostaria de ver encaminhada esta moda dos blogues, sob pena de ela não passar de uma moda. Tudo o resto não passa de consagrações de já consagrados, de exibicionismo de uma determinada camada intelecual e pseudo- que, além de ter fácil acesso à internet, gosta de se ver ao espelho da sua própria verdade.
Felizmente existem blogues que rompem, ou pelo menos tentam romper com os espartilhos e as determinações fixas que pululam no nosso pouco humilde jornalismo e ensaísmo publicitário.
Um professor do secundário dizia-me que estivesse atento aos falsos intelectuais, que infelizmente são os que têm mais visibilidade televisiva. Era professor de filosofia, obviamente, disciplina inútil mas boa peça museológica que, pelo menos, sob determinadas condições, nos vai alertando para as falsas superfícies que tentam moldar o povo à sua imagem. Falava de Miguel de Sousa Tavares, Miguel Esteves Cardoso, etc., homens que, uns mais outros menos, conseguem fazer uma leitura eficaz e interessante do que se passa à sua volta. Não digo que estes sejam falsas superfícies nem que queiram mostrar-se mais do que sejam, até porque nem sequer os conheço e só foram para aqui chamados a título de exemplo (evitem-se polémicas e falsas interpretações). Mas a verdade é que a inteligência que transparece dos maiores centros difusores de informação - e actualmente o mundo é informação - faz uma rasura desapiedada dos níveis de discussão e diálogo, o que não é tanto culpa dos intervenientes mas antes dos centros de difusão. Por outras palavras, a pluralidade de perspectivas vai-se desvanecendo, e só fica o que convence imediatamente, o que é relativamente fácil de compreender e evita formas de ver o mundo que disturbem profunda e culturalmente os respectivos telespectadores e leitores. Só pretendia, afinal, salientar que, na blogosfera há ou deveria haver uma anulação dos rostos, o que, contudo, não implicaria o anonimato - ainda não reflecti sobre este mas parece-me ser uma falsa questão. A anulação dos rostos seria a troca da publicidade pela entrega despretensiosa, ou seja, pela dádiva com a qual todos os nossos ciúmes e desejos de projecção se têm de debater.

P.S. Talvez este post seja o resultado de um dos poucos "blogopasseios" que fiz, onde fui encontrar este caminho, que, embora trilhando perspectivas nas quais não me reconheço mas com as quais me debato, é, na minha opinião, dos académicos mais acessíveis e renovadores que se pode encontrar por Coimbra. E isto significa uma vontade de abertura e de debate com as mais diversas posições, o que nas próprias universidades não é uma tarefa fácil. Ora e se não é fácil nas universidades, na blogosfera cria-se também o comezinho ciclo vicioso que é tão próprio dos portugueses, o qual vai além de ideologias e educações, transparecendo em várias facetas da vida pública e privada. Como não se quer dialogar nem compreender o outro, por mais que discordemos desse outro, atacamos e tentamos ficar por cima. Daqui aos saneamentos e ao refúgio do grupo em que nos sentimos protegidos e apoiados vai um pequeno passo. Por vezes não se consegue atingir a profundidade, e a blogosfera (como talvez toda a internet) carregará este problema até ao fim, mas procure-se mais a dádiva e menos o ciúme.
E agora chega, porque já me sinto demasiado moralista. Estou a ficar sem palavras, parou de chover e apetece-me ir ver o mar, que imagino cinzento e desvairado como este vento de sudoeste nas bandeiras do armazém, o único grande sinal de que o Verão acabou.