Incêndios pessoais.
Nunca mais as cinzas terão a mesma cor depois deste verão. Nunca mais o fogo será a brincadeira de criança no quintal do avô, espalhando e apagando as pequenas chamas que consumiam em segundos a erva seca e o entulho acumulado. Nunca mais a voz distante e profética do “quem brinca com o fogo mija na cama”. Nunca mais a mesma memória dos olhos vermelhos, do fumo denso e do entusiasmo de ser deus, uma pequena divindade numa correria eufórica ao redor da fogueira inofensiva que seria a primeira hipótese de controlar e modificar a natureza.
Agora, depois de sentir os ventos que se formavam na cabeça do fogo, depois de sentir a asfixia que um mísero lenço tentava evitar, depois da casa salva por baldes e mangueiras, depois dos serros lambidos pela língua voluptuosa das chamas, penso que muita gente deveria estar com medo de mijar na cama (e não só os incendiários...) À distância de semanas consigo finalmente atribuir palavras a algo que transcende todas as explicações imediatas, toda a retórica política e toda a vontade dos envolvidos. De todas as imagens que me restam, uma: enquanto eu segurava numa mísera mangueira, um bombeiro tirava fotografias de uma enorme chama que, saindo de um vale, atingia alturas impressionantes. A máquina fotográfica, digital, pequenina, apta para os mais avançados trabalhos de espionagem, não conseguiu, contudo, disfarçar o incómodo de quando o jovem bombeiro se viu observado. Pensei, por entre uma pequena revolta: "jamais conseguirias apagar aquelas chamas, jamais serias veradeiramente útil nas dezenas de focos que se desenvolvem nesta zona. Contempla o poder da destruição. És homem." E de certa forma senti-me próximo dele. Quando as coisas ficaram mais calmas também tirei fotografias, mas naquele momento em que o fogo se aproximava das casas seria incapaz de o fazer. Talvez a proximidade e a afecção pessoal tenha uma palavra a dizer nas vontades. De qualquer das formas, ele e eu somos humanos, e todo o espectáculo da destruição pelo fogo é algo que, embora me custe dizê-lo, faz vibrar os nossos sentidos e as nossas emoções. Há quem goste disso e seja extremamente irresponsável (ou louco) e há quem não se sinta atraído (ou tenha medo de admitir). No entanto, a proximidade e a afecção pessoal poderão ser um dos mais importantes factores a ter em conta nas nossas reacções ao fogo e aos incêndios
De facto, é impossível voltar atrás e replantar as árvores que arderam, é impossível organizar melhor os bombeiros e as estruturas de prevenção e combate aos incêndios, os quais, efectivamente, são deficientes (heróis há-os em todo o lado, mas também os há para o lado do anti- ). O mais importante é que, em certas regiões do Algarve, é insignificante atribuir subsídios e compensações. Isto porque no fogo não há senão desejos humanos, irracionais, violentos como as imagens da televisão tão "realisticamente" mostram. Paixões dos que consciente ou inconscientemente os provocam, dos que os combatem aflitos, dos que apaziguam e discursam, acenado com um monte de notas comunitárias. Os subsídios são uma paixão. Passadas as paixões fica o amor dos outros, daqueles que viveram uma vida inteira encurralados entre um monte e uma ribeira e viram arder em segundos os sobreiros e laranjeiras que eram parte do seu sangue. Quem se alimenta da terra e com ela convive, desabitua-se de paixões violentas e promessas adiadas, vive na paciência ignorada de um mundo que lhes escapa, respira um ar de violência apocalíptica.
Sei que estou a exagerar, sei que há casos e casos (e certamente muitos zés-espertalhões preparam-se para sacar a sua talhadinha do bolo), mas só assim consigo compreender que os incêndios não são apenas a combustão de floresta e bens materiais. Na sua irracionalidade, os fogos dos incêndios são também a descoberta dos esquecimentos e o confronto do homem – individual e colectivamente – com os seus fantasmas. E é por isso que, depois deste verão, as cinzas não deveriam ter a mesma cor. Acima do que arde deve estar aquilo que fica, mas se o que fica é a desolação e a falta de esperança, então os incêndios são uma pequena labareda de um outro grande fogo.
O vento e a chuva são importantes. São a origem do esquecimento, limpam, purificam, levam para longe os esqueletos. Os montes despidos em breve darão lugar à desordem das plantas e árvores nascentes, a cinza escorrerá pela torrente, onde a espera um mar revoltoso de inverno.
A nortada, o outro vento, varre, já vai tentando varrer lentamente as marcas do inferno. Conseguirá, finalmente, quando a ela se juntar a chuva e ambas arrastarem para os vales, rios e ribeiras a lembrança de um verão que mostrou as fraquezas de um país e a força destruidora de um fogo que encontrou os melhores aliados humanos e naturais.
Quem foi esquecido voltará a sê-lo, e se o levante não trouxer de novo um calor seco é possível que só se venha a falar de incêndios lá mais para o próximo ano, talvez com prevenções redobradas: é que o vento malvado trouxe cinzas e folhas de eucalipto queimadas até às varandas de betão que rodeiam as praias, além de ter tapado, imagine-se!, o tão precioso sol de agosto. É preciso cuidado para que o turismo não saia prejudicado destas aventuras da natureza...
Nunca mais as cinzas terão a mesma cor depois deste verão. Nunca mais o fogo será a brincadeira de criança no quintal do avô, espalhando e apagando as pequenas chamas que consumiam em segundos a erva seca e o entulho acumulado. Nunca mais a voz distante e profética do “quem brinca com o fogo mija na cama”. Nunca mais a mesma memória dos olhos vermelhos, do fumo denso e do entusiasmo de ser deus, uma pequena divindade numa correria eufórica ao redor da fogueira inofensiva que seria a primeira hipótese de controlar e modificar a natureza.
Agora, depois de sentir os ventos que se formavam na cabeça do fogo, depois de sentir a asfixia que um mísero lenço tentava evitar, depois da casa salva por baldes e mangueiras, depois dos serros lambidos pela língua voluptuosa das chamas, penso que muita gente deveria estar com medo de mijar na cama (e não só os incendiários...) À distância de semanas consigo finalmente atribuir palavras a algo que transcende todas as explicações imediatas, toda a retórica política e toda a vontade dos envolvidos. De todas as imagens que me restam, uma: enquanto eu segurava numa mísera mangueira, um bombeiro tirava fotografias de uma enorme chama que, saindo de um vale, atingia alturas impressionantes. A máquina fotográfica, digital, pequenina, apta para os mais avançados trabalhos de espionagem, não conseguiu, contudo, disfarçar o incómodo de quando o jovem bombeiro se viu observado. Pensei, por entre uma pequena revolta: "jamais conseguirias apagar aquelas chamas, jamais serias veradeiramente útil nas dezenas de focos que se desenvolvem nesta zona. Contempla o poder da destruição. És homem." E de certa forma senti-me próximo dele. Quando as coisas ficaram mais calmas também tirei fotografias, mas naquele momento em que o fogo se aproximava das casas seria incapaz de o fazer. Talvez a proximidade e a afecção pessoal tenha uma palavra a dizer nas vontades. De qualquer das formas, ele e eu somos humanos, e todo o espectáculo da destruição pelo fogo é algo que, embora me custe dizê-lo, faz vibrar os nossos sentidos e as nossas emoções. Há quem goste disso e seja extremamente irresponsável (ou louco) e há quem não se sinta atraído (ou tenha medo de admitir). No entanto, a proximidade e a afecção pessoal poderão ser um dos mais importantes factores a ter em conta nas nossas reacções ao fogo e aos incêndios
De facto, é impossível voltar atrás e replantar as árvores que arderam, é impossível organizar melhor os bombeiros e as estruturas de prevenção e combate aos incêndios, os quais, efectivamente, são deficientes (heróis há-os em todo o lado, mas também os há para o lado do anti- ). O mais importante é que, em certas regiões do Algarve, é insignificante atribuir subsídios e compensações. Isto porque no fogo não há senão desejos humanos, irracionais, violentos como as imagens da televisão tão "realisticamente" mostram. Paixões dos que consciente ou inconscientemente os provocam, dos que os combatem aflitos, dos que apaziguam e discursam, acenado com um monte de notas comunitárias. Os subsídios são uma paixão. Passadas as paixões fica o amor dos outros, daqueles que viveram uma vida inteira encurralados entre um monte e uma ribeira e viram arder em segundos os sobreiros e laranjeiras que eram parte do seu sangue. Quem se alimenta da terra e com ela convive, desabitua-se de paixões violentas e promessas adiadas, vive na paciência ignorada de um mundo que lhes escapa, respira um ar de violência apocalíptica.
Sei que estou a exagerar, sei que há casos e casos (e certamente muitos zés-espertalhões preparam-se para sacar a sua talhadinha do bolo), mas só assim consigo compreender que os incêndios não são apenas a combustão de floresta e bens materiais. Na sua irracionalidade, os fogos dos incêndios são também a descoberta dos esquecimentos e o confronto do homem – individual e colectivamente – com os seus fantasmas. E é por isso que, depois deste verão, as cinzas não deveriam ter a mesma cor. Acima do que arde deve estar aquilo que fica, mas se o que fica é a desolação e a falta de esperança, então os incêndios são uma pequena labareda de um outro grande fogo.
O vento e a chuva são importantes. São a origem do esquecimento, limpam, purificam, levam para longe os esqueletos. Os montes despidos em breve darão lugar à desordem das plantas e árvores nascentes, a cinza escorrerá pela torrente, onde a espera um mar revoltoso de inverno.
A nortada, o outro vento, varre, já vai tentando varrer lentamente as marcas do inferno. Conseguirá, finalmente, quando a ela se juntar a chuva e ambas arrastarem para os vales, rios e ribeiras a lembrança de um verão que mostrou as fraquezas de um país e a força destruidora de um fogo que encontrou os melhores aliados humanos e naturais.
Quem foi esquecido voltará a sê-lo, e se o levante não trouxer de novo um calor seco é possível que só se venha a falar de incêndios lá mais para o próximo ano, talvez com prevenções redobradas: é que o vento malvado trouxe cinzas e folhas de eucalipto queimadas até às varandas de betão que rodeiam as praias, além de ter tapado, imagine-se!, o tão precioso sol de agosto. É preciso cuidado para que o turismo não saia prejudicado destas aventuras da natureza...
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