levante

textos sem sentido e outros

quinta-feira, setembro 18, 2003

Ciúmes

Sinto que ainda não me consegui integrar no universo dos blogues. Tal facto deve-se menos à falta de tempo para actualizar o meu pedacinho de exposição cibernáutica do que a um conjunto de dúvidas e preconceitos que tenho tentado identificar.
Talvez fosse importante perguntar-me pelo grau de justeza da palavra integrar. O que significará aqui, neste espaço (sem espaço?), uma tentativa de integração? Será esta necessária e inevitável?
Não consigo deixar de adoptar um certo cepticismo em relação às novas formas de comunicação que se vão construindo, articulando por aí. Vício filosófico, porventura, incapacidade de lidar com o reino do virtual (o único "real" que existe) que toda a filosofia, temerosa e periclitante, não consegue admitir - porque aí se joga a perda de fundamentos, a dispersão dos rostos e a disseminação dos conceitos. Será isto? Seria isto que o Quim, fora do seu ar e sob outros ventos, face a face, realmente me tentava dizer.
Talvez, mas até aí tudo bem, até aí concedo a minha fraqueza, esta tendência para a posse e a reunião, este medo de me deixar perder no escuro de uma casa sem alicerces. Mas a (minha) filosofia, e aqui começo a discordar, não é nostálgica, é ciumenta. Não pretende recuperar um real que se perdeu nos tentáculos técnico-científicos do cartesianismo (a internet e a blogosfera são alguns desses tentáculos, nascidos do método, da aplicação técnica dos conhecimentos, do conjunto de instalações e aparelhos que surgem encadeados orgânica e "naturalmente" no mundo. É interessante verificar como a certeza científica e a sua aplicação técnica foram capazes de produzir e encadear produtos que destroem os fundamentos dessa certeza e aplicação), quer antes a posse da dispersão para, enfim, a reunir até ao limite do possível. Sabermo-nos tocados pelo limite é afinal o mais difícil (merda, estou cheio de Derrida!).
Nas Meditações sobre Filosofia Primeira Descartes procurava, entre outras coisas, verificar a concordância entre as imagens que o homem possui no seu interior e a realidade que está lá fora, no exterior. Com brilhantes artifícios o filósofo alcança o seu objectivo e acerca-se da tão afamada certeza cartesiana. Esta clássica questão da filosofia do conhecimento, que Descartes colocou sob um novo prisma, enraizou-se de uma forma tão profunda na nossa cultura que é hoje difícil deixarmos de falar numa realidade exterior. Aparentemente, ela existe: o som que ouço corresponde ao carro que passa lá fora, fecho os olhos e tenho a certeza de um monitor com a página do blogger à minha frente, a televisão dá-nos constantemente a distância do mundo que existe (e daqui de abrem as fobias da manipulação televisiva). Sempre lá fora, no exterior de nós. Mas eis que, na própria filosofia e nos mais diversos campos da cultura ocidental (aquela que mais se preocupa com estas questões de concordância, já que outras culturas pura e simplesmente vivem as coisas...) as rupturas começam a acontecer. E se os alicerces da nossa casa estivessem assentes na subjectividade e na insegurança? E se tudo não passasse de uma ilusão? A pouco a pouco vemos que aquilo que nos rodeia não passa de uma complexa construção, móvel, sem um ponto fixo; um “pós-moderno” reino do virtual - expressão que odeio usar mas que, neste caso específico, parece preencher o espaço aberto pela ideia.
Mas como relacionar isto com o meu problema de integração?
Nem tudo é virtual e volátil neste reino. Aparentemente a integração deveria ser fácil, sem barreiras. Os blogues são das formas de expressão mais democráticas e livres do planeta. Só deveriam ser necessários uma forma de acesso à internet e algo para escrever. O resto seriam construções de teóricos. No entanto, a verdade é que as construções são próprias dos sistemas ditos virtuais e sem centro real. E estas construções são aglutinadoras e têm tendência a basear-se em centros de reunião e distribuição. Não sei se é isto que está a acontecer com a blogosfera, mas acho que não podemos negar o poder das relações no seu interior, pois só assim consigo perceber as minhas reticências. Se a blogosfera não é absolutamente virtual e aberta, tal não se deve ao facto de sabermos existir alguém por detrás dos posts (e dessa forma sentirmos um elemento real), mas à simples constatação de que há laços reais, na sua maioria involuntários e inconscientes: ideológicos, regionais, profissionais, temáticos. Não me quero integrar, quero des-integrar, pois é aí, na nudez dos laços, que está o corpo impuro desta forma de comunicação. E eu adoro o desafio de dissecar corpos pecadores, mesmo quando estou errado e acabo por esquartejar anjos.
Não sou nostálgico, não quero o real, quero os laços e as relações que parecem flutuar no ar.
Ao escrevermos estamos já a reunir, a querer a posse, a evitar a fuga. Escrever: o ciúme.