levante

textos sem sentido e outros

terça-feira, julho 25, 2006

o vómito

Deve até ter sido por acaso, mas eu não quero que tenha sido por acaso. Quero que o vómito da criança que acabara de ver a exposição da World Press Photo tenha sido provocada por algumas das suas fotografias. Quero que ela tenha sentido nas entranhas o nojo profundo que só a ignomínia humana é capaz de provocar. Quero que a beleza das fotografias e a coragem (ou o estômago, ou o despudor?) dos fotógrafos não consigam tapar a caixa de Pandora de onde, todos os anos, saem os males do mundo. Quero que um dia mais tarde a criança perceba melhor o ser humano e o ódio que é capaz de lhe corroer as entranhas, pois lá bem perto de onde saem os vómitos é onde o ódio se entranha. Quero, porque eu já não consigo vomitar.

sábado, julho 15, 2006

música de outono num dia de verão só porque é sábado e o calor aperta e o sol por acaso levanta-se com drake num dia limpo e azul

Saturday sun came early one morning
In a sky so clear and blue
Saturday sun came without warning
So no-one knew what to do.
Saturday sun brought people and faces
That didn't seem much in their day
But when i remember those people and places
They were really too good in their way.
In their way
In their way
Saturday sun won't come and see me today.
Think about stories with reason and rhyme
Circling through your brain.
And think about people in their season and time
Returning again and again
And again
And again
And saturday's sun has turned to sunday's rain.
So sunday sat in the saturday sun
And wept for a day gone by.

Nick Drake, Saturday Sun (Five Leaves Left)

segunda-feira, julho 10, 2006

ontem

não sei se para participar da vitória da Itália ou se motivado pela exuberância da cabeçada de Zidane, decidi ir à Roma de Fellini, que já aguardava a vez há algum tempo. Foi boa escolha, dormi descansado por entre as cores que se colam ao ecrã como numa grande festa da visão, acompanhada pelos ruídos que só uma grande cidade é capaz de produzir. Adormeci com o leve travo a grostesco que exalava das personagens. Dormi também aconchegado por prostitutas de diversas classes e por um clérigo ao "sabor dos tempos", que desfilava numa passerelle. Sonhei com frescos num túnel do metro e deslizei pelas estradas ao volante de uma potente mota que, acompanhada de outras dezenas de motas, desenhava nas ruas nocturnas e brilhantes a velocidade que só o cinema sabe dar aos nossos olhos.

terça-feira, julho 04, 2006

estática

Vejo Sete Palmos de Terra sozinho porque não estou em Coimbra. Por isso não tenho com quem partilhar a lenta melancolia que se desprende dos últimos episódios e que parece encaminhar as personagens para uma espécie de abismo.
Há cada vez mais mortos a pairar por entre os vivos, mortos que pesam e aliviam, mortos que marcam a ausência, mortos que são a morte a dizer "existo!" e que, suponho, provocarão a vida até que esta se veja obrigada a renovar-se, a renovar-se constantemente.
Um dos mortos dizia à irmã viva que é preciso deixar de ouvir a estática, ou seja, que devemos imaginar que a vida dos homens está rodeada de ondas de rádio e electricidade estática, sendo que esta última depressa se torna insuportável; e por isso torna-se necessário encontrar as frequências certas, aquelas que nos fazem rodear de algum equilíbrio. É uma boa imagem.