levante

textos sem sentido e outros

segunda-feira, junho 19, 2006

kairos

Continuo fascinado pela noção temporal de Kairos (do grego: o momento certo, o momento em que as coisas devem acontecer), tão própria de algumas culturas antigas, nomeadamente a grega, em que o conceito foi forjado, mas também com pontos de contacto com a hebraica, que curiosamente é das culturas em que as palavras são vividas mais à flor da pele.
No nosso ocidente abstracto e consumista, que é cada vez menos “o nosso ocidente” e mais “o nosso mundo”, vamos perdendo a capacidade de pensar o tempo dessa forma, preocupados que estamos com as cronologias, os prazos e os horários, dimensões temporais em que a intensidade é dissolvida no cumprimento dos minutos. Vamos esquecendo que o sentido dos dias nem sempre se encontra numa terra prometida, seja ela o Reino dos Fins, o comunismo ou a imersão num mundo de desejos tecnológicos alimentados pelo mercado das aparências e do capital. Vamos negligenciado que, muitas vezes, são os momentos de decisão que contam, momentos “certos” em que damos os passos decisivos. Estes podem vir a revelar-se positivos ou negativos, certos ou errados, mas tudo isso – as consequências – é insignificante perante a imponência desse Kairos em que as coisas se começam a transformar, ganhando novos sentidos. Falo aqui de intuições, mas não considero que as intuições sejam uma espécie de instinto. Se elas surgem, é também pelo resultado de um trabalho vital, por um escavar da nossa interioridade, por um desarrumar dos nossos hábitos. As acções decisivas (no amor, no futuro, na vida) são intuições que se preparam e cultivam, mas nunca serão plenas se não forem acompanhadas de uma revolução temporal em que Kairos irrompe como numa explosão de sangue. Só assim, julgo, podemos algum dia voltar a aproximarmo-nos, de forma não religiosa, desse tempo kairológico, desses momentos em que uma flor repentina desabrocha na terra fértil que a esperava.

quarta-feira, junho 14, 2006

palavras viciadas e erradas

No post anterior existia uma gralha. Agora já não existe. Era um facto tipográfico que já não existe.
Os erros corrigem-se e nem sempre as suas marcas permanecem. Os erros são necessários ao bom funcionamento da atenção.
Um erro não é uma mentira nem uma falsidade. Por vezes, um erro é um facto que cria outros factos que dão origem a uma nova ordem de acontecimentos.
Mas normalmente os erros apagam-se, ou pelo menos nós tentamos apagá-los. Os erros que não se conseguem apagar penetram a memória como uma falha, ou melhor, permanecem no seu interior como um abismo, no sem fundo a que Freud foi buscar o inconsciente.
Há toda uma terapia do erro que faz parte do crescimento humano e da saúde. Lidar com o erro é um exercício a estimular.
O erro é sempre um forma de iluminar a perspectiva com que talhamos o mundo. Dizemos "isto é um erro" e das nossas palavras transparecem intenções.
A memória selecciona os erros que se devem conservar, mas a memória faz parte do abismo, e portanto os erros permanecem ocultos. Há erros que conduzem ao ressentimento, um sinal de má saúde. Tendencialmente, o ressentimento é uma violência sobre si próprio. O ressentimento exteriorizado é uma violência contra os outros. O ressentimento violento pode aparecer de várias formas: o silêncio, o choro, o genocídio. Todas essas formas aparecem como uma tentativa de resolver um erro que já não se localiza facilmente.
Os erros não resolvidos tendem a permanecer ocultos e constituem um alimento para o ressentimento, tomando parte da erótica da violência. Os erros morais não resolvidos (de que o exemplo mais flagrante é o pecado original) dão origem a ressentimentos morais, à má consciência. Paradoxalmente, a consciência é um óptimo condutor da violência, a qual nunca poderá deixar de estar relacionada com o sexo.
Ressentimento, violência e consciência formam a trilogia do erro moral. Enquanto impulso e forma de movimento, o sexo é o motor dessa trilogia. O sexo é o motor de muitas outras trilogias, mas o erro moral jamais poderá subsistir sem a condenação do sexo, que deverá produzir ressentimento e inibir os fluxos. O erro é uma forma de controlo social.

terça-feira, junho 13, 2006

frase matinal

"A filosofia é um vício como coçarmo-nos em certos sítios."

Vergílio Ferreira, Nítido Nulo

terça-feira, junho 06, 2006

o cosmos e a pele

A ideia não é minha, embora apareça recorrentemente, desde há anos, na compreensão dos espaços que percorro; ouvi-a de novo numa aula, pela boca de alguém que fala com encanto das pequenas coisas que encantam a vida: é ideia simples mas por vezes ignorada, assumir que as condições meteorológicas condicionam aquilo que fazemos, os nossos estados de espírito e até a forma como nos entregamos aos outros. Como poderia não ser assim, se é todo o cosmos a pressionar a nossa pele, não apenas o frio ou a chuva, não apenas o vento que sopra em devaneio, mas todo o cosmos, todos os espaços visíveis e invisíveis que se concentram, que se alinham em direcção ao nosso corpo, que se condensam, provocando um sem-número de sensações contínuas; é a nossa pele pressionada contra o cosmos, num frenesim de pequenas camadas e de pequenas sensibilidades, a nossa pele de novo e sempre transformada em campo de batalha contra aquilo que nos escapa e fustiga e acaricia como se de um outro corpo, infinito e poderoso, se tratasse. Como poderia isto não ser fundamental?