levante

textos sem sentido e outros

segunda-feira, agosto 23, 2004

reflexões em torno do "Mito de Sísifo" de Camus

E há sem dúvida aqueles dias em que os objectos quotidianos aparecem como algo estranho, formando uma barreira intransponível que nos engole como um poço sem fundo. Uma cadeira que inexplicavelmente invade o nosso espaço, um livro cuja capa nos repugna, uma ferramenta que não sabemos usar, um garfo que nos viola. Mas esta experiência (e já é tempo de voltarmos a usar "experiência" sem um pendor científico) também nos é acessível na relação com outros seres humanos. Basta andar um pouco pelas ruas anonimamente movimentadas de uma grande cidade, onde os olhares fogem de si próprios, basta viver numa região invadida pelo turismo de massas, basta, no limite, atentar nos diversos genocídios que percorrem a nossa história. Todas estas experiências são a marca da possível estranheza do mundo e do outro humano, onde ambos se dissolvem no absurdo de existirem dentro de nós mas fora de uma relação necessária. Portanto, fora de qualquer imposição moral ou reconhecimento de diferença.
Pensar a partir desta vivência humana - que é sempre individual, subjectiva, relativa - é pensar no limite da possibilidade de pensar. Porque aí, onde o mundo se mostra sempre distante e onde o absurdo derruba os tijolos do nosso muro de racionalidade, aí há o vazio (ou aparecem os deuses ou surge o Outro de certas filosofias contemporâneas, todos eles soluções metafísicas na procura de um sentido para a existência humana).
E o vazio, ao contrário do buraco sartriano, não desperta a curiosidade e o fascínio; não há no vazio um espaço que possamos preencher com os dedos, tapando o desconhecido como se tapa os limites de um buraco. No vazio não há margens, só medo.

segunda-feira, agosto 16, 2004

tectos falsos

O fogo rasgou artificialmente a tela negra onde as cores de Van Gogh desabrocham como flores carnívoras. As estrelas comem os olhos incautos, as cores, as dores, o trepidar de agosto. Engolem sem mastigar. Se um dia houver a noite, tecto de pouca luminosidade, que seja assim rude e voraz. Para lá dos dias só pó e galáxias. Talvez deus.

domingo, agosto 08, 2004

correcção tardia

Desculpa Priit, só hoje vi o comentário e não sabia que na Estónia há mais pessoas a ensinar português.
A propósito, anda por aí uma Associação da Comunidade Estónia: http://www.lisest.org/

ainda Teixeira-Gomes

"Mas um dia de vento levante que a tornou mais nervosa e implicativa do que o costume, precipitou a explosão da crueldade que a sopeava a custo e ficámos novamente como cão e gato. A influência do levante na vida das famílias algarvias!"

"Maria Adelaide", Manuel Teixeira-Gomes

quarta-feira, agosto 04, 2004

é apenas outra cidade como todas as cidades recortadas pela amargura do mar
apenas um farol inquieto funcionário cumpridor discreto sempre sempre sempre a voltar
apenas um olhar de rompante veludo azul que cobre de sonhos o lençol suado de verão
onde vamos agora que o silêncio acabou e há ondas ali por baixo a rolar sobre areias de nunca?
(de onde vêm os turistas pela estrada do esquecimento? que farol foram encontrar?

terça-feira, agosto 03, 2004

foda-se o vento!

Hoje estava na praia, rodeado de toalhas e pessoas desconhecidas, conversando sob as falésias onde me descobri e cresci, falésias de ouro e barro divino que invadem lentamente o sossego do mar.
De repente, com um sotaque do norte, surge irado o seguinte grito:
_ Foda-se o vento!
E mais adiante uma réplica com o mesmo sotaque:
_ Apoiado!

Não me senti chateado, talvez um pouco deslocado.
Toda a gente devia saber que, à excepção do tempo influenciado pelo levante, o vento noroeste é o grande protagonista dos fins de tarde algarvios. E hoje este nem sequer era muito forte. Mas as pessoas estão de férias, têm direito a reclamar! Vá lá que raramente se insurgem contra os ventos do sul, vá lá que reconhecem a estupidez dos ventos do norte. Desculpem então a minha impertinência e o meu desconforto.

síndrome de estocolmo ou não?

O "síndrome de Estocolmo" classifica os casos em que vítimas de rapto desenvolvem uma empatia e uma afecção para com os raptores. Diz-se "de Estocolmo" pois refere-se ao assalto de um banco ocorrido em Estocolmo no ano de 1973. Nesse assalto foram feitos quatro reféns durante seis dias, os quais viriam a resistir ao salvamento, recusando-se a testemunhar contra os raptores e entregando-lhes dinheiro para a sua defesa. No dia da libertação um fotógrafo terá registado um beijo entre uma refém e um raptor, e fala-se até de uma relação amorosa entre ambos.
A partir daí o "síndrome de Estocolmo" tem servido para classificar os mais variados casos, alargando-se quer a outros tipos de cativeiro, quer a situações de violência, nomeadamente a doméstica.

Ela, moça vulnerável aos impulsos do levante mediterrânico, diz que nas últimas semanas o síndrome passou a ter mais um campo de aplicação: o dos viajantes que não se conhecem e são obrigados a conviver por alguns dias, passando por locais novos, enfrentando situações de incerteza, receio ou alegria.
Acho que não se deveria alargar o síndrome a tal campo, e talvez fosse melhor criar o "síndrome do viajante melancólico". Mas enfim, talvez sejamos todos raptores uns dos outros, fechando-nos reiteradamente nas palavras que dizemos e nas que ficam por dizer, segurando-nos na pele quente que envolve os gestos, embrulhando-nos nos olhares que deixamos por aí como um sol perdido (à espera, à espera, à espera...

domingo, agosto 01, 2004

incêndio no quiosque

O que me irrita nos incêndios é ir ao quiosque e o Sr. Zé, que todos os dias me vende o jornal, não saber explicar as suas causas. Tenho-o encontrado na habitual indignação, inquirindo todos os que passam, avançando hipóteses mirabolantes, contando histórias de um passado em que isto não existia.
- Da minha parte pouco tenho a dizer Sr. Zé, no ano passado havia a avioneta que largava bolas de fogo, este ano já se fala de interesses imobiliários e vinganças, para o ano será a vez de um dragão fumegante, provavelmente fugido do seu estádio no Porto, a servir de expiação dos nossos pecados.
Mas o que me irrita mesmo é ir ao quiosque e nada. E o Sr. Zé costuma falar com todo o tipo de gente, desde a que compra o "Expresso" àquela que se deslumbra com o "24 Horas", cada uma com a sua sabedoria. Mas nada, o Sr. Zé não consegue, não arrisca fazer uma síntese dos argumentos, é tudo muito complexo.
- Eu diria mesmo absurdo, Sr. Zé!
Quando o sporting perde há sempre o árbitro e o sistema, ou seja, as coisas ganham uma lógica incontornável; mas agora tudo se esvai em conjecturas e discursos politicamente correctos, para não se dizer que não se diz nada, para não se reconhecer o antiquíssimo abandono do interior algarvio (e não só...), para evitar referir que tudo isto é o espelho de Portugal, da impotência administrativa e judicial face aos interesses privados. Pois que ardam as florestas e se comprem submarinos. Os algarvios, que são povo de brandos costumes, habituados ao bem-receber das elites políticas e intelectuais que se vêm espojar nas suas praias, agradecem!
Ficamos com o absurdo da situação.