levante

textos sem sentido e outros

quinta-feira, dezembro 18, 2003

Portugal-Suomi

Dia 19 regresso à Finlândia, provavelmente um dos países mais enigmáticos da Europa. Sei que tem havido alguma falta de neve, o que já levou o barbudo da Coca-Cola a adiar alguns compromissos publicitários e turísticos. Sei também que há pouca luz natural por esta altura, razão pela qual terei mais dificuldades em preencher o preto-e-branco da memória falsa da fotografia.
Além de outros compromissos que não interessa estar para aqui a relatar, irei, segundo os meus interesses, estar mais atento à forma como os finlandeses gerem o silêncio. Ouvi no outro dia a brilhante ou inócua afirmação de que eles seriam os mais orientais da Europa, e isto dever-se-ia exactamente a uma peculiar relação com o silêncio, com uma certa necessidade de recolhimento, com o trabalho organizado e aplicado. No entanto, parece-me haver qualquer coisa de errado nesta lógica, algo que não se deixa explicar por conceitos históricos, geográficos e muito menos biológicos.
E o mais interessante é sempre verificar o que se esconde por detrás ou ao lado do silêncio: uma ideia de comunidade que consegue paradoxalmente ser cultivada junto da necessidade de isolamento e recolhimento (a qual não significa individualismo...), a calma dos gestos, a alma plácida dos lagos, as emoções reservadas, o sorriso simples e humilde que consegue substituir tantas palavras desnecessárias, a ausência de género linguístico, a ingenuidade do sangue (uma coisa difícil de explicar, que muitos mediterrânicos pensam não ter mas têm...), o contacto envergonhado, as angústias recalcadas, as angústias disfarçadas de ironia e sarcasmo, enfim, tudo isso que se vai perdendo em palavras.
Bem, espero não ter tempo nem vontade de actualizar o blogue.
A saída de Lisboa - II

Mais uma vez vinha a sair de Lisboa pela Vasco da Gama,
o rio colado ao céu pelo azul-cinzento daquela lenta hora da tarde, e pensava num post anterior que havia tido um cenário idêntido. Pensava no post porque não podia já recuperar as emoções e as imagens que construí, que nunca existiram, que resultaram, afinal, da tentativa de escrever algo bonito - palavra ingénua, eu sei, mas gosto sempre de acreditar que há algo por detrás da palavra - para esta estupidez que é termos por vezes alguém que nos ouve.
Mais uma vez vinha a vogar sobre o Tejo,
enfeitiçado por Sinuhé, El Egípcio, tradução castelhana da fabulosa obra do finlandês Mika Waltari. Levantei os olhos e reconheci o cenário de uma anterior viagem de expresso. Ao meu lado já não estava uma brasileira nordestina mas uma algarvia de Albufeira que dormia, suponho, ou fingia ter os olhos fechados para que o vazio do tempo se esgotasse mais facilmente.
Mais uma vez vinha a precisar de ver a outra margem do rio,
e ela escondida, magoada, distante. Casualmente, sem pensar nas consequências do meu acto, tinha colocado no discman The Köln Concert de Keith Jarret (ia correndo a primeira parte...inqualificável...), e tudo se conjugou para que o autocarro descolasse do chão e eu perdesse a gravidade que subjuga os corpos terrestres, e todo o meu corpo, mesmo sem a ajuda de substâncias ilícitas, irrompeu pela margem insegura onde o tempo dos relógios não sabe entrar, onde os nomes das pessoas deixam de ter significado, onde finalmente perdemos as roupas e as maquilhagens e tudo o que fica é a pele nua, exposta, vulnerável.
Mas tudo isto é mentira, tudo isto é impossível. Ou talvez não.

terça-feira, dezembro 09, 2003

Por vezes o mundo como que se abre e tudo parece fazer sentido. As ideias têm uma correspondente realidade, o espírito repousa sobre a serenidade de um corpo, a noite dá lugar ao dia. É este o princípio da ilusão.
Debilidades

No dia 5 de Dezembro assisti a uma conferência de/com Gianni Vattimo, conceituado filósofo italiano que se insere na linha da pós-modernidade. Percursor do “pensamento débil”, procura lidar com a herança de Nietzsche e Heidegger, fazendo ao mesmo tempo a ligação com as consequências sociais e políticas que essa “nova” forma de pensamento pode suscitar. A conferência foi bastante esclarecedora e serviu, pelo menos, para que eu pudesse limar algumas arestas em relação à pós-modernidade (expressão que, como referi num post anterior, não gosto de usar e me parece muitas vezes ser um campo de inócuas masturbações intelectuais).
Já no exterior da sala, o sorridente e humorado filósofo disse que temos que ser nós, mediterrânicos, a salvar isto... Estava a brincar, é claro, e obviamente não sabe o quão alheados da vida cívica e política estão os portugueses (algo que não acontece de forma tão marcada na Itália – apesar do fenómeno Berlusconi).
Mas depois, agora, ponho-me a pensar: já existe um pensamento filosófico aglo-saxónico e um pensamento filosófico continental, sendo o primeiro mais pragmático e empirista e o segundo mais ontológico e metafísico. Porque não inaugurar um pensamento mediterrânico, uma terceira via em que finalmente o sangue e o calor entrem na filosofia? Porque não aproveitar o sol e colocar definitivamente o prazer como a consequência inevitável de todas as nossas acções e teorias? E uma filosofia do levante, dos ventos de dentro que aquecem os corações dos amantes sob as águas tépidas do mar? E um pensamento das paisagens queimadas e estropiadas pelo homem, dos homens encostados às encostas das costas, da áfrica afunilando clandestinos pelo estreito do desespero, do turismo de postal como consequência última de um mundo que vai deixando de saber o que são diferenças humanas e culturais? E uma poesia de cristais de palavras, e palavras do tamanho de dedos, e dedos do tamanho dos olhos, e olhos da altura das cores, e arco-íris a ligar os planetas, e sonhos de leite e mel, e todos os conceitos se esvaem, todo o sangue jorra para dentro de um chão aberto e dobrado e confiscado pela mentira de ser sólido, e tudo se acalma, e todos os rostos se inclinam para o meu e dizem, cala-te!
Ah, e é tão difícil pensar quando pensamos que o sabemos fazer... Debilidades, masturbações.

quarta-feira, dezembro 03, 2003

O poder da imaginação

Regresso a casa depois do jantar. O frango soube-me a Coimbra desgastada e a uma lenta melancolia de lugares perdidos.
Antes do jantar tinha assistido ao lançamento do livro O poder da imaginação, livro do prof. Rui Bebiano que, de acordo com o próprio e os restantes entendidos, abre um campo de investigação até agora inexistente em Portugal. Trata, se bem me lembro, da juventude e dos fenómenos (históricos, culturais, sociais...) que com ela se relacionam. Trata de prestar contas a uma juventude que cresceu com o Maio de 68 e com as suas repercussões na sociedade portuguesa. Trata e retrata, suponho, uma experiência pessoal de irreverência, contestação e conhecimento profundo de uma cultura que, estando tão à flor da pele, se sujeita aos acasos da estonteante evolução histórica e social do nosso mundo e do nosso país (que às vezes também faz parte do mundo!). Exercício arriscado e necessário, modelo que deveria ser regra nas universidades.
Mas nenhuma destas constatações, retiradas das avaliações dos comentaristas e amigos presentes, foram a causa da alteração do sabor do meu frango. O que realmente foi interessante, para não utilizar um adjectivo mais lamechas, foi ver que, dentro de alguns dos seus amigos, havia a presença-ausente de um tempo. Para uma geração que viu uma Coimbra empenhada e viva, efervescendo com a luta de rua, de café, de ideias e tudo o mais, deve ser frustrante a forma como as coisas vão correndo actualmente.
Veio da área do teatro o discurso mais caloroso e desiludido. Do prof. José Barata, ex-membro do TEUC. Começou pelo café do TAGV (Teatro Académico de Gil Vicente), local onde se estava a realizar o lançamento do livro, local onde alguns lutaram para evitar reuniões fascistas. Seguiu-se o “caso Mandarim”, café mítico que tive a sorte de visitar numa excursão do secundário, embora sem saber que o bitoque então comido tinha o aroma de uma Coimbra em vias de se dissipar. Assim foi, no meu primeiro ano em Coimbra o Mandarim já tinha fechado. Passados meses era substituído por um esplendoroso McDonalds. Passou-se ainda pelo Tropical, café que frequento com alguma regularidade e que, excluindo algum pseudo-intelectualismo próprio da democratização e mercantilização da intelectualidade, oferece um ambiente agradável aos finos (imperais são mais para o lado do levante), tremoços, alcagoitas e restantes coisas necessárias ao bom uso da razão.
Tudo isto para adornar uma intervenção acerca de uma questão político-teatral mal contada ou omitida no livro. Questão que, pelo menos para mim, acabou ela própria por se tornar o adorno de uma melancolia e de um tempo mal sarado, pressentido no seio de um grupo de pessoas que, tal como tantos outros milhares em Portugal, sabem e vão esquecendo que nem sempre o prato servido tem o sabor prometido.

terça-feira, dezembro 02, 2003

Manuel

Durante muito tempo, Manuel Teixeira-Gomes não era para mim mais do que o nome de uma escola secundária de Portimão, aquela que nunca frequentei mas que todos os dias via. Não me parece errada a ideia de que – até determinada idade e embora haja quem nunca se livre desta vicissitude – os nomes de pessoas atribuídos a ruas, praças, instituições e outras coisas mais que os homens acham por bem qualificar com a ausência dos ilustres, acabam por dissolver a própria pessoa que se pretende homenagear. Portanto, Teixeira-Gomes era nome de escola, tal como 25 de Abril era nome de Avenida, Gil Eanes nome de praça onde havia campos de jogos e baloiços, D. Carlos I rua onde a mãe trabalhava, onde eu bebia galões no café da frente e onde passava horas a brincar num armazém poeirento e cheio de brinquedos estragados. Isto quando saia da escola, primeiro da Camilo Castelo Branco, e depois da outra secundária, a António Aleixo, que julgo ser poeta popular mas de quem nunca, deliberadamente, tentei saber alguma coisa, quando saía da escola, digo, e não havia autocarro para apanhar junto do estádio do Portimonense, um dos poucos espaços da cidade com um nome decente e despretensioso (bem, já chega de falar da intimidade, dos factos íntimos, dessa coisa da qual não quero perder o pudor de tornar pública...).
Mais tarde esse nome, Teixeira-Gomes, associou-se também à lista dos presidentes da República. Penso que isso se tornou mais patente após uma qualquer visita ao mísero – porque pequeno, porque tristemente revelador do valor da cultura para o Algarve – museu de Portimão, que por acaso também “tem o nome”, desculpem, também se chama Teixeira-Gomes. “Ter o nome” já significa ter algo de exterior, ser qualificado por esse exterior, receber um simbolismo. Portanto, para a intenção deste texto, as coisas “chamam-se”, “não têm nomes”.
Depois conheci um trineto de Teixera-Gomes, soube de peculiaridades de que entretanto me esqueci, aprendi que ele até era um razoável escritor, que gostava de viajar.
E agora, mais recentemente, soube também que ele é o primeiro escritor, o primeiro observador oficial do “levante”. Eleito por maioria absoluta, com um voto a favor e zero contra, sem abstenções, creio ser esta a eleição menos polémica da história algarvia.
Senão digam-me, porque posso estar enganado, que outro foi capaz de dizer isto:
“Eu julgo que a realização perfeita da paisagem marítima grega, tal como os poetas da antiguidade a conceberam, está no troço da costa do Algarve, entre a Ponta do Altar e a Ponta da Piedade, isto é, desde a barra de Portimão até ao fecho da baía de Lagos”.
Embora, como é óbvio isto só fosse possível “antes de as fábricas de conservas de peixe – indústria aliás muitíssimo apreciada e meritória – terem empestado toda a beira-mar, e antes de haver começado a aparecer, sobre as rochas, essa linha de chalés que desonra e conspurca a natureza, seja onde for que ela se arme nos moldes gregos.” (“Sobre a paisagem grega”, de 1926, in Agosto Azul)
Bem, as fábricas já fecharam e são pertença de gatos e toxicodependentes, os chalés foram substituídos pela solidez do betão, inventou-se o néon, a música das discotecas que se espalha como um sussurro sobre a praia, inventaram-se as marinas e os jet-skis, mas ainda assim fecho os olhos, limpo as encostas, e sei Manuel, que não precisavas de seres uma escola para teres razão.